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No auge do poder, Angela Merkel sai da crise ainda mais forte

A chanceler é admirada pelo pulso firme, pelo plano de recuperação da economia europeia que ajudou a montar — e por esnobar Trump

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h16 - Publicado em 12 jun 2020, 06h00

Faz tempo que Angela Merkel, a chanceler da Alemanha, é a voz mais poderosa da Europa, tanto pela capacidade de gestão quanto pela falta de competição à altura. Uma série de fatores, porém, parecia estar abrindo fendas na armadura de competência da senhora de 65 anos, sempre de terninho e salto baixo e sem um pingo de glamour, que está completando quinze anos no governo. A primeira trinca foi sentida quando ela marcou data para sair: há dois anos, anunciou que não concorreria a um novo mandato de deputada, que acaba em 2021, abrindo mão da liderança da União Democrata Cristã (CDU) e do comando do país. Depois, atravessou, em público, três constrangedores episódios de tremedeira incontrolável — assegurou que os acessos não atrapalhavam em nada seu desempenho e foi em frente. Em meio a tudo isso, o CDU perdeu o parceiro de coalizão, saiu-se pior do que esperava em eleições regionais e viu a extrema direita se tornar uma ameaça real.

Quando se pensava que Merkel tinha assumido a posição de lame duck — o “pato manco” que não acompanha o bando e fica sujeito a ataques de predadores, expressão que, em inglês, designa um político sem expressão —, eis que ela novamente se firma no topo: segundo pesquisa recente, conta com a aprovação de 79% dos alemães e caminha, isso sim, para um fim de carreira dos mais excepcionais. “Merkel nunca será vista como uma líder carismática, mas sabe administrar como ninguém a política do dia a dia”, define Karl-Theodor zu Guttenberg, que foi seu ministro da Defesa entre 2009 e 2011.

Contribuiu muito para a renovada admiração pela chanceler a forma como conduziu o combate ao novo coronavírus. Combinando clareza de decisões com tecnologia de ponta e serviço médico de qualidade, ela conteve o contágio, limitou o número de mortos e impediu a repetição, em seu país, das cenas de sofrimento vistas nos vizinhos — de quebra, ganhou 11 pontos no índice de popularidade só de março para cá. Passado o pior da pandemia, é Merkel agora quem está no comando do ousado plano de reconstrução das economias da União Europeia. Ao lado do francês Emmanuel Macron, anunciou a injeção de 500 bilhões de euros para os países do Sul, os mais afetados, em condições muito menos rígidas do que as usuais — Merkel sempre foi feroz guardiã da chave do cofre do bloco.

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Na mesma UE, provando que não dá ponto sem nó, Merkel garantiu seu legado instalando na presidência do órgão executivo, a Comissão Europeia, uma ex-ministra de seu governo, Ursula von der Leyen. Em outra jogada acertada, o projeto de recuperação econômica tem tempero ecológico — questão que mobiliza a juventude europeia —, prevendo vastos recursos para as indústrias verdes e outros passos na direção da total neutralização das emissões de carbono nos 27 integrantes da UE. A propósito, o meio ambiente é uma das bandeiras do francês Macron, que sonha um dia ocupar na UE o protagonismo de uma Merkel. Para coroar, a chanceler alemã esnobou Donald Trump — figura de pouquíssimos amigos na Europa — ao anunciar que não iria ao encontro do G7 marcado para junho (e adiado para setembro) em Washington. Foi a primeira a fazê-lo, alegando a necessidade de fiscalizar o controle da pandemia, e assim frustrou os planos do presidente americano de usar a presença dos líderes mundiais mais importantes como demonstração de normalidade nos Estados Unidos.

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Filha de um pastor luterano, Merkel foi criada na Alemanha Oriental, o lado comunista do país, e conquistou um ph.D. em química quântica pela Universidade de Leipzig — a origem, segundo estudiosos da política europeia, de sua excepcional capacidade analítica e do método científico de tomar decisões. Cada desafio é submetido a comparações, projeção de cenários, ponderação de riscos e a longa reflexão, sem espaço para emoções — todas as esferas de seu governo são guiadas por critérios técnicos. Agindo dessa forma, ela soube, por exemplo, tirar partido da ascensão da China, o que levou o comércio bilateral a passar dos 200 bilhões de euros anuais. Tornou-se também a principal ponte entre o Ocidente e a Rússia (ela fala russo com fluência), sendo a única chefe de Estado que Vladimir Putin trata com deferência. Em relação a Trump, percebeu logo que, com ele, a parceria entre Europa e Estados Unidos não era mais a mesma e não insistiu em uma aproximação. “Merkel é extremamente pragmática e guiada por metas”, diz Dan Hough, professor de ciências políticas da Universidade de Sussex.

Apesar da boa fase da chanceler, os problemas internos continuam e o CDU passa por um momento difícil. Em fevereiro, a sucessora que Merkel ungiu pessoalmente, Annegret Kramp-­Karrenbauer (o nome de difícil pronunciação costuma ser abreviado para AKK), desistiu da candidatura ao cargo de chanceler e abandonou a presidência do partido depois que um braço da legenda se aliou, em uma eleição regional, ao Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema direita — hoje a terceira força política alemã. Os tropeços partidários não arranharam a imagem de Merkel. A Mutti (Mãe), como os alemães apelidaram a chanceler, que não tem filhos, há de pôr ordem na casa.

Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691

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