Foi com sentimentos mistos que o presidente russo Vladimir Putin viu, na terça-feira 2, o ativista Alexei Navalny, seu maior inimigo e Voldemort particular (é um nome que Putin não pronuncia), ser condenado a dois anos e oito meses de prisão em uma colônia penal remota. Por um lado, satisfação: Navalny, 44 anos, tão articulado quanto teimoso, passará um tempo longe dos 6 milhões de inscritos em seu canal no YouTube e 2,5 milhões de seguidores no Twitter, justo quando atinge o auge da popularidade. De outro, preocupação: a equipe que o apoia usará as mesmas ferramentas para inflar sua capacidade de levar multidões às ruas contra o governo — agora, definitivamente, como um mártir da causa anticorrupção, condição a que começou a ascender quando, em meados do ano passado, em plena pandemia, foi envenenado e quase morreu. De dentro de um cercado de vidro no tribunal onde ouviu a sentença, Navalny desafiou o czar. “Eles não podem prender o país inteiro e cada vez mais a população se dá conta disso. O momento em que tudo vai desmoronar está próximo”, profetizou. Putin, ainda uma força inabalável na Rússia, deve ter sentido um arrepio.
Navalny mexeu os primeiros pauzinhos para expor a corrupção russa em 2008, tendo como alvo os conglomerados nascidos do desmonte das estatais soviéticas. Ninguém o conhecia. De denúncia em denúncia, entrou para a política, fez barulho, convocou protestos e foi se destacando entre os vários oposicionistas duramente reprimidos pelo Kremlin. Passados cinco anos, 37% dos russos já tinham ouvido falar dele. O governo o prendeu várias vezes, mas sempre por pouco tempo. Sofreu dois atentados com substâncias desconhecidas e, em um deles, perdeu parte da visão, mas foi em frente, denunciando o Rússia Unida, do governo, como “um partido de vigaristas e ladrões” — expressão que virou meme entre os jovens. Ampliando cada vez mais sua capacidade de mobilização popular, o ativista, nos últimos tempos, vinha promovendo a tática do “voto inteligente” — como o Kremlin costuma usar de todos os subterfúgios para barrar as figuras da oposição nas eleições, passou a recomendar que se votasse em qualquer candidato, de qualquer partido, que fosse contra o poder estabelecido.
Estava nesta cruzada quando foi envenenado, em um vilarejo na Sibéria. Levado ao hospital mais próximo, entrou em coma, e assim foi transportado, em jato particular acionado por ONGs, para Berlim, na Alemanha. Lá se constatou a presença em seu organismo de um agente nervoso exclusivo dos serviços de inteligência russos. Ele se recuperou e voltou — agora, um nome reconhecido por 82% dos russos —, sabendo que seria preso. A acusação: violara os termos da liberdade condicional em um processo por suposta fraude financeira. “Vocês podem explicar como eu poderia ir à polícia informar minha localização se estava em um coma?”, ironizou, no julgamento. “O Kremlin teme a forma como Navalny mostra à população que há caminhos que não incluem Putin no poder”, avalia Ben Noble, especialista em política russa da University College de Londres. “Além disso, ele é mais jovem e carismático do que o atual presidente, o que o torna uma alternativa política e uma ameaça.”
Pouco antes de regressar, Navalny divulgou o áudio de uma conversa sua com um agente russo, fazendo-se passar por colega espião, em que a tentativa de envenenamento foi confirmada e, pela primeira vez, localizada: a substância teria sido colocada em sua cueca. Nas duas semanas em que passou atrás das grades, aguardando o julgamento, continuou se movimentando. Fez divulgar o documentário sobre uma mansão bilionária de Putin (100 milhões de visualizações no YouTube). Também convocou a população a ir às ruas em dois fins de semana seguidos — e foi atendido. Multidões enfrentaram o frio, a neve e a truculência policial, de leste a oeste, ao longo dos onze fusos horários russos, com saldo de mais de 10 000 presos. No sábado 23, 120 cidades registraram atos de protesto, no que foi considerado o maior movimento popular de oposição ao governo desde os estertores da finada União Soviética.
Derrubar vinte anos de um regime forte e que ainda acumula 65% de popularidade não será tarefa fácil. “A estratégia é construir uma oposição capaz de, a curto prazo, impedir que o Rússia Unida conquiste maioria nas eleições parlamentares de setembro e enfraquecer a influência de Putin nos governos estaduais”, diz Peter Rutland, professor da Universidade Wesleyan, nos Estados Unidos. Navalny conta também com a pressão dos governos estrangeiros contra sua prisão. Enquanto isso, cita antigos czares para seguir provocando Putin: “Tivemos Alexandre, o Libertador, e Yarloslav, o Sábio. Agora é a vez de Vladimir, o Envenenador de Cuecas”. Essa briga não acabou.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724