Um dos mais famosos gângsteres dos Estados Unidos, Al Capone (1899-1947) não teve a morte cinematográfica esperada para alguém que, no auge da carreira, controlou o comércio ilegal de bebidas alcoólicas em Chicago durante a Lei Seca, na década de 20. Scarface, como também era conhecido, em decorrência de uma cicatriz no rosto, passou os últimos anos de vida em sua mansão de Palm Island, em Miami, na Flórida. Em 1939, saiu da prisão de Alcatraz, após cumprir sete dos onze anos a que fora condenado por crimes de evasão fiscal. A sífilis contraída na época que trabalhou em um bordel de Nova York cobrou seu preço. A doença o acompanhou até o fim, quando sofreu um ataque cardíaco, aos 48 anos. Mae, mulher de Capone e mãe do único filho do casal, Albert Francis, vendeu a residência em 1952. Quase sete décadas depois, a suntuosa construção foi comprada por um incorporador, que agora quer derrubá-la sob a justificativa de apagar o legado do famigerado personagem. Autoridades municipais discordam. O debate está lançado.
Al Capone comprou a mansão em 1928, quando tinha apenas 29 anos e uma longa carreira no crime organizado, que, até aquele momento, lhe permitira acumular cerca de 100 milhões de dólares. Dois anos antes, o Grande Furacão de Miami praticamente destruiu a cidade. O criminoso pagou somente 40 000 dólares na propriedade. Ele aplicou cinco vezes o valor de compra numa reforma que incluiu a instalação de guarita, muros de 2 metros de altura e até uma gruta de coral. Para reforçar a segurança, instalou guardas no 2º andar — de lá, eles viam quem chegava de barco. Era seu refúgio dos rigorosos invernos de Chicago e se provou também um belo álibi para suas investidas assassinas. Em 14 de fevereiro de 1929, o Dia dos Namorados americano, sete integrantes da gangue do rival Bugs Moran foram metralhados em uma garagem de North Side por supostos policiais fazendo uma batida. Eram homens de Capone. Enquanto isso, o chefão tomava sol em Miami.
O número 93 da Palm Avenue fica em um terreno de quase 2 800 metros quadrados. Só a casa de paredes em branco-pérola tem 563 metros quadrados, quatro quartos e uma piscina. Sofreu várias mudanças ao longo dos anos, mas o estuque espanhol e os detalhes em art déco continuam lá. A joia kitsch foi comprada pelo incorporador Todd Michael Glaser e o investidor Nelson Gonzalez pela bagatela de 10,7 milhões de dólares. Anteriormente, Glaser havia adquirido a residência do milionário e predador sexual Jeffrey Epstein, em Palm Beach, também na Flórida, e a derrubou para apagar qualquer vestígio da passagem do proprietário. Ele quer fazer o mesmo com a antiga mansão de Capone e construir no lugar uma moderna residência de dois andares, com oito suítes, banheiras jacuzzi, sauna e spa. Com poucas melhorias, poderia ser revendida por 16,9 milhões de dólares. Com a nova arquitetura, atingiria 45 milhões de dólares.
A permanência da mansão como foi comprada por Al Capone e sua possível demolição têm gerado debate na comunidade de Palm Island e entre as autoridades municipais de Miami. Ao mesmo tempo, as três netas de Capone anunciaram um leilão de 174 itens que pertenceram ao avô, entre os quais uma pistola Colt de 1911 e um relógio de bolso Patek Philippe, a ser realizado em outubro. Tanto a casa de Palm Island quanto os pertences atraíram a atenção de curiosos e colecionadores, mostrando que o deslumbramento pelo gângster continua firme setenta anos após a sua morte.
Por mais nobres que as intenções de Glaser possam soar — ele compara a casa de Al Capone aos monumentos que trazem marcas da escravidão nos Estados Unidos —, não há como estabelecer tal parâmetro. Em Chicago, locais ligados ao gângster foram varridos do mapa para eliminar referências a crimes cometidos por ele. No entanto, até hoje turistas fazem peregrinações a esses endereços. “Miami não pode apagar a história, mas deve preservá-la e contextualizá-la para os visitantes e as gerações futuras”, escreveu o historiador A. Brad Schwartz em artigo para o jornal Miami Herald. Seja como for, Al Capone jamais desaparecerá por completo.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756