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O polêmico projeto para remover brasões das ex-colônias em Lisboa

Prefeitura socialista reacendeu o debate sobre a necessidade de expor o lado vergonhoso de um legado altamente celebrado

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h14 - Publicado em 19 mar 2021, 06h00
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  • Desde que o colonialismo caiu em desgraça, restou às potências europeias celebrar, em feriados, monumentos e livros escolares, seu momento de glória, aquele pedaço da história repleto de orgulho nacional em que seus domínios se estendiam a terras e populações distantes. Mas a roda girou, a situação passou a ser vista sob a óptica da colônia e agora os países da Europa que foram donos de territórios além-mar, na África, nas Américas e na Ásia, estão sendo obrigados a encarar uma nova interpretação.

    O passado glorioso adquire, hoje, contornos de exploração vergonhosa. Em Portugal, de quem o Brasil se libertou há quase 200 anos, mas que só nos anos 1970 abriu mão de seus domínios na África, a questão ganha efervescência a cada novo capítulo da campanha por uma releitura que expo­nha e discuta os erros de antigamente. “O conhecimento geral continua marcado por uma análise celebratória da expansão marítima e pela ideia de que o colonialismo português foi diferente, mais harmonioso e racialmente integrado”, diz Nuno Domingos, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Fala-­se muito pouco da exploração, da violência, da promoção do trabalho escravo e das cidades coloniais fortemente segregadas.” O mais recente nó de discórdia entre quem prefere não remexer muito na história, talvez por receio de gerar muito ruído, e quem quer revirá-la de ponta cabeça partiu da prefeitura socialista de Lisboa, que pretende remover os brasões das ex-colônias, montados em arranjos artísticos de plantas e flores nos gramados lisboetas da Praça do Império. A justificativa não é de revisão histórica, mas de que eles não fazem parte do projeto original. Mesmo assim, políticos de vários partidos, entre eles dois ex-presidentes, condenaram o que chamaram de tentativa de “reescrever a história”. Um deputado, Ascenso Simões, resolveu pôr lenha na fogueira: publicou artigo sugerindo a demolição pura e simples da portentosa escultura Padrão dos Descobrimentos, uma das atrações turísticas da capital. Pouco antes, o Parlamento fora sacudido pela polêmica em torno das homenagens prestadas ao tenente-coronel Marcelino da Mata, herói nacional e militar mais condecorado do país, que morreu no início de fevereiro.

    Fundador da notoriamente brutal tropa de operações especiais portuguesa, Da Mata aparece no documentário Anos de Guerra — Guiné 1963-1974 narrando tranquilamente um episódio de que participou: “Apanhamos o gajo, despimos a farda e fizemos a mesma coisa. Cortamos a piça (pênis) e metemos na boca”. Apesar das críticas, o voto de “profundo pesar” foi aprovado por ampla maioria. A pandemia, e a suspensão das aulas durante boa parte do ano passado, atrapalhou a implementação de outro esforço para tirar o pó do legado de séculos de colonialismo português: a introdução, no currículo do último ano escolar, de um curso opcional sobre o “passado doloroso” do país, com seu histórico de escravidão e opressão. Em entrevista, o primeiro-ministro António Costa, do Partido Socialista, se disse preocupado com o empenho em “diabolizar” o passado. “Creio que se está abrindo de forma artificial uma fratura perigosa para a nossa identidade nacional, para a nossa relação com o mundo”, declarou.

    A polêmica em Portugal se repete em todas as antigas metrópoles europeias, onde as cicatrizes do legado colonial têm sido expostas e exigido respostas oficiais. A Bélgica removeu estátuas e rebatizou ruas e avenidas para apagar homenagens ao rei Leopoldo II, que governou de 1865 a 1909 e impôs sua vontade a ferro e fogo na sua colônia, a única particular da história, onde hoje fica a República Democrática do Congo, que teve 20 milhões de habitantes dizimados. O presidente da França, Emmanuel Macron, recusa-se a pedir desculpas pela atuação francesa na Argélia, mas, em gesto altamente simbólico, reconheceu que o ativista da independência Ali Boumendjel foi torturado e morto pelo Exército francês em 1957, desmentindo a versão oficial de suicídio. O Reino Unido retirou estátuas (outras foram derrubadas) de figuras celebradas do comércio escravagista e tem planos de rever a narrativa do passado em seus museus.

    Lisboa, por sua vez, prepara-se para novo vendaval: a inauguração nos próximos meses de um memorial às vítimas do tráfico de escravos. Intitulada Plantação — Prosperidade e Pesadelo, a obra do artista angolano Kiluanji Kia Henda, composta de 540 canas-de-açúcar de alumínio preto, está sendo montada em uma das áreas mais movimentadas da capital. “A modernidade que se vê aqui foi construída pelas mãos do povo negro. É importante que todos se conscientizem disso”, diz o artista. Conciliar o Padrão dos Descobrimentos com Plantação — Prosperidade e Pesadelo é o dilema dos portugueses nestes tempos de revisão de legados.

    Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730

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