O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, chegou ao Palácio do Itamaraty nesta segunda-feira, 17, para um encontro com seu colega brasileiro, Mauro Vieira, e discussões sobre a parceria entre Moscou e Brasília com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Sua visita é considerada altamente controversa pela comunidade internacional, devido à invasão russa na Ucrânia, e os frutos das conversas devem ser limitados.
A previsão é que os diplomatas discutam uma série de assuntos, que na economia passam por temas relacionados ao sistema financeiro mundial e à abertura do mercado russo de carnes e produtos agrícolas para o Brasil, bem como o fornecimento de fertilizantes. Atualmente, 25% dos fertilizantes utilizados na agricultura brasileira vêm da Rússia, sendo o principal fornecedor do produto.
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“Os ministros conversarão sobre o potencial da parceria estratégica brasileiro-russa, estabelecida há mais de vinte anos, e as perspectivas da cooperação em áreas de interesse comum, com foco em comércio e investimentos, ciência e tecnologia, meio ambiente, energia, defesa, cultura e educação, bem como o fortalecimento do diálogo político sobre temas bilaterais, internacionais e regionais”, disse o Itamaraty em comunicado.
Para Igor Lucena, economista e pesquisador de relações internacionais no think tank britânico Chatham House, os fertilizantes são o ponto nevrálgico das relações comerciais russo-brasileiras, que impedem uma condenação aberta à invasão da Ucrânia.
“O Brasil poderia contornar a dependência do produto russo buscando novos fornecedores, como Canadá e Estados Unidos, mas aproveitou a oportunidade criada pelas sanções ocidentais contra Moscou para ampliar o acesso ao mercado da Rússia a preços mais baixos”, explica o especialista. Em 2022, o comércio bilateral entre Brasil e Rússia atingiu o recorde histórico de US$ 9,8 bilhões.
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O Ministério das Relações Exteriores brasileiro também informou que Vieira e Lavrov vão discutir a situação na Ucrânia.
“O Brasil tem defendido, nos foros internacionais e em contatos bilaterais, a cessação imediata de hostilidades e a importância de conjugar esforços diplomáticos que facilitem o alcance de solução pacífica negociada”, comunicou o Itamaraty.
Lucena avalia, contudo, que a visita de Lavrov está “estrategicamente alocada” após o pronunciamento de Lula sobre a guerra na Ucrânia durante sua viagem a Pequim e Emirados Árabes. No domingo 16, o presidente disse que Kiev também tem responsabilidade pela guerra e criticou o papel dos Estados Unidos e da própria Ucrânia no conflito, alegando que suas posturas fazem apenas prolongá-lo.
“O chanceler russo chega a Brasília em terreno agradável. Ele não deve ser colocado em nenhuma saia-justa com perguntas espinhosas sobre a agressão do Kremlin contra o país vizinho”, avalia Lucena.
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O governo brasileiro se colocou à disposição para ajudar a costurar um acordo de paz, por meio da mediação de uma espécie de clube de países neutros que envolveria a China, e tem defendido a cessão imediata de ataques e hostilidades.
Lula disse ainda que é preciso que os Estados Unidos “parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz”, o que incomodou o governo americano. Nos bastidores, a percepção é de que o Brasil tem adotado um tom aberto contra Washington e de alinhamento a Moscou e Pequim.
Segundo Lucena, a viagem de Lavrov deve ampliar essa percepção, enquanto serve para endossar o pacifismo do Itamaraty em relação à Ucrânia. O economista analisa que, apesar de controversa, uma foto do chanceler russo ao lado do presidente Lula reforça que existem outros polos no planeta que compactuam com a postura do Brasil – uma espécie de palco geopolítico que contrapõe os Estados Unidos.
“O problema dessa postura é que ela falha ao colocar vítima e agressor no mesmo patamar”, ressalta o especialista. “A centenária neutralidade da diplomacia brasileira não cabe mais no século XXI.”
Ainda assim, o saldo diplomático da viagem de Lavrov tem potencial de pender para o lado positivo ou para o negativo. Em uma estratégia à la Getúlio Vargas, que flertou com a Alemanha e a Itália fascistas nos anos 1930 para pressionar os Estados Unidos a abrirem os cofres para o Brasil em troca de lutar pelos Aliados na II Guerra, Lula pode obter concessões precoces das potências ocidentais para evitar um alinhamento brasileiro com a Rússia. Por outro lado, os americanos e os europeus dispõem de instrumentos geopolítico-econômicos, como travar amplos acordos comerciais, para punir o governo petista.
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Um possível aceno de Lula ao Ocidente que pode resultar da controversa visita, atenuando tensões diplomáticas, seria uma almejada troca de prisioneiros, envolvendo Sergey Cherkasov, um espião russo que se passava por cidadão brasileiro e foi preso no Brasil em abril, e Evan Gershkovich, repórter americano do jornal Wall Street Journal detido na Rússia sob acusações de espionagem.
O Kremlin já emitiu um pedido de extradição para Cherkasov, alegando que ele seria, na verdade, um narcotraficante procurado pelo governo russo. Já os Estados Unidos acusam Moscou de ter prendido Gershkovich sob acusações falsas, com a pretensão justamente de obter uma troca de prisioneiros favorável.
“Não me surpreenderia se, nos dias seguintes à visita de Lavrov, o Itamaraty anunciasse a troca”, diz Lucena, da Chatham House. “Mas o tema não está na pauta oficial.”
O pesquisador de relações internacionais avalia, ainda, que uma troca de prisioneiros bem-sucedida pode fortalecer o pleito do Brasil para tornar-se figura central na mediação para o fim da guerra na Ucrânia.
Durante a reunião do chanceler russo com membros do governo brasileiro, também há expectativa de que seja discutida a ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas – ao contrário da China, a Rússia apoia a candidatura do Brasil a uma vaga permanente.
A perspectiva de uma reforma no órgão, no entanto, é quase inexistente. “Este é um aceno vazio. Os membros do Conselho de Segurança não têm interesse em partilhar o poder, mesmo com aliados que defendem sua ampliação, como a Alemanha”, afirma Lucena.
Depois do Brasil, Lavrov vai visitar Venezuela, Cuba e Nicarágua – considerados antros do sentimento antiamericanismo na América Latina. Além disso, as nações são vistas como ditaduras perante a comunidade internacional.