Há mais de um milênio, em um mês de janeiro, uma gigantesca armada viking, composta de mais de 100 barcos, subiu o Rio Sena para realizar o que entrou para a história como o Cerco de Paris. O então vilarejo do reino da Frância Ocidental passou semanas sitiado até ser finalmente invadido e saqueado pelos nórdicos durante a Páscoa. Agora, em 2024, igualmente em janeiro, estendendo-se pelo mês seguinte, a cidade voltou a ser alvo de um cerco — desta vez, por tratores conduzidos por agricultores da própria França. Enfurecidos com a piora de sua situação financeira e social, eles bloquearam oito autoestradas responsáveis por conectar a capital francesa ao restante do país e, munidos de tendas, mantimentos e banheiros químicos, criaram um mega-acampamento distante apenas 30 quilômetros da celebrada e chique avenida dos Champs-Élysées.
O governo francês apressou-se a fazer concessões e a mobilização foi temporariamente suspensa, mas antes disso se espalhou pela União Europeia (UE), promovendo chuva de ovos e alimentando quebra-quebra e fogueiras em frente ao Parlamento Europeu em Bruxelas, na Bélgica, e travando estradas na Itália, Espanha, Holanda, Grécia, Polônia, Romênia e Alemanha. As raízes da revolta são antigas e foram se avolumando com o tempo. A persistente alta da inflação pós-pandemia tem levado os governantes a cortar subsídios, entre eles o do óleo diesel, crucial para o campo. Os mecanismos para garantir o equilíbrio de preços dos produtos agrícolas, que já estavam defasados, se desestruturaram com a entrada de importações de fora da UE, sobretudo da Ucrânia.
Grande produtor de cereais, o país de Volodymyr Zelensky ficou impedido pelo bloqueio naval russo imposto por Putin de suprir seus mercados habituais no Oriente Médio e África, e passou a escoar sua produção pelo Danúbio, a preços baixos. Nessa conta se destaca ainda a perspectiva de se assinar o encalacrado acordo comercial com o Mercosul, que, na visão dos agricultores, abriria o bloco a mais importações baratas.
Até a causa verde é responsabilizada pela turma dos tratores. A introdução de novas regras ambientais, mudanças que a UE julga necessárias para enfrentar a crise climática, eleva os custos da atividade agropecuária — caso da exigência de conter as emissões de metano no gado leiteiro, que reduziria pela metade o rebanho, da obrigatoriedade de destinar 4% das terras à preservação de florestas e da redução drástica no uso de pesticidas. “Os agricultores são duplamente pressionados. De um lado pelo clima, cada vez mais hostil, e de outro pelos altos custos da transição ecológica”, afirma François Purseigle, professor de agronomia do Instituto Nacional Politécnico de Toulouse.
Além de interromper o trânsito e abalar a cadeia de suprimentos, a insatisfação no campo tem um pé na política: ela ocorre justamente na área rural, ressentida com o que vê como seu abandono pela elite, um celeiro de eleitores particularmente fértil para os partidos populistas de direita, como o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França, e o Alternativa para a Alemanha. Preocupados com o estrago que a bandeira agrária pode causar em eleições próximas, como a do Parlamento Europeu em junho, os governos recuam. Para amansar os “agricultores em fúria”, como foi batizado o protesto francês, o novo primeiro-ministro Gabriel Attal prometeu manter o subsídio ao diesel e flexibilizar as regras ambientais, enquanto o presidente Emmanuel Macron afirmava de novo, com todas as letras, que o acordo UE-Mercosul, como está, não será aprovado. “A raiva dos agricultores cristaliza o ressentimento de boa parte da população com os problemas econômicos”, resume Kevin Cunningham, cientista político da Universidade Tecnológica de Dublin, na Irlanda.
O declínio da agricultura europeia — por muitos séculos a força que moveu a Europa — é sintoma da perda de relevância do continente diante de seus rivais na geopolítica, sobretudo China e Estados Unidos. A participação da União Europeia no PIB global caiu um terço desde 1995 e os países-membros sofrem com o atraso em inovação e tecnologia. A produção de alimentos estagnou: os 9 milhões de agricultores dos 27 países do bloco movimentam apenas 1,4% do PIB da UE e especialistas duvidam que a planejada injeção de 307 bilhões de euros no setor até 2027 consiga reverter um quadro que tem raízes estruturais, fincadas em fazendas familiares carentes de profissionalização. Para piorar, 33% dos produtores têm mais de 65 anos de idade e, entre os jovens, há pouco ou nenhum interesse pela cansativa vida na lavoura. Nesse contexto, o cerco dos tratores, por mais impactantes que sejam as imagens que produz, dificilmente colherá frutos duradouros.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879