Data aguardada o ano inteiro pelos americanos por ser uma oportunidade ímpar de praticar o esporte nacional favorito — comprar com desconto —, a Black Friday deste ano acabou virando notícia por outro motivo: os arrastões e tiroteios nas lojas. Atônita, a população acompanhou cenas comuns em centros urbanos cercados de favelas acontecerem logo ali, na sua vizinhança. Houve saques em Los Angeles, Chicago e São Francisco, entre outras cidades. Na Carolina do Sul, uma troca de tiros dentro de um shopping deixou três feridos, entre eles uma criança de 10 anos. Em Oakland, na Califórnia, o segurança de uma equipe de TV que filmava uma invasão foi cercado por doze homens e baleado. Os roubos realizados por quadrilhas haviam, na verdade, começado antes da famosa sexta-feira, quando oitenta bandidos, divididos em 25 carros, interditaram uma rua comercial em Walnut Creek, na Califórnia, e, munidos de sprays de pimenta, subjugaram os funcionários de uma unidade da rede de luxo Nordstrom e fizeram uma limpa. Na calada da noite, ladrões ainda esvaziaram butiques das grifes Burberry e Louis Vuitton em São Francisco, deixando um prejuízo de mais de 1 milhão de dólares.
Os arrastões de novembro representam um novo capítulo na escalada de violência que assola os Estados Unidos desde o início da pandemia, com aumentos dramáticos de crimes, sobretudo homicídios. O ano de 2020 entrará para a história pela ocorrência de 5 000 assassinatos a mais do que em 2019 — no período, o número de mortes violentas nas grandes cidades americanas saltou 30%, a maior alta em meio século. A disparada da matança empanou décadas de políticas construtivas em metrópoles que ficaram famosas por haver conseguido controlar a criminalidade, entre elas Nova York (45% a mais de homicídios), São Francisco (alta de 36%) e Washington (aumento de 19%). A situação em Chicago, a terceira maior cidade do país, onde os bairros pobres vêm há anos sendo estrangulados por chacinas e tiroteios diários, atingiu um grau de mortalidade de país menos desenvolvido: entre janeiro e outubro, foram 649 assassinatos (no Rio de Janeiro, ocorreram 957 em 2020), a pior taxa em 25 anos. A lista vai longe: Atlanta, Denver, Las Vegas, Los Angeles, Filadélfia e Nashville também têm projeção de aumentos significativos de homicídios neste ano.
O consenso entre os especialistas é que a disparada de crimes está visceralmente conectada à pandemia. “Ela deixou evidente o que já sabíamos: que vastos segmentos da sociedade estão vulneráveis e desassistidos pelas políticas públicas. São eles que agora recorrem à violência”, diz Volkan Topalli, professor de criminologia da Universidade do Estado da Geórgia. A paralisação geral dos serviços durante boa parte de 2020 fechou as portas de alguns pilares de estabilidade nos bairros pobres, como escolas, centros comunitários, igrejas e agências de auxílio psicológico. “Jovens ociosos são o ingrediente perfeito para a violência em qualquer lugar”, ressalta John Roman, criminologista da Universidade de Chicago. A esse fator somaram-se uma piora nos índices de emprego e queda expressiva na renda da população carente. Até o esvaziamento dos centros urbanos em consequência do trabalho remoto tem sua parcela de responsabilidade — sem gente circulando, essas áreas ficaram à mercê da ação de bandidos.
Outro propulsor do aumento da criminalidade foi a multiplicação da população armada. Em 2020, os americanos compraram 23 milhões de armas, um arsenal 64% acima da média anual. Jogando mais lenha na fogueira, a venda de bebidas alcoólicas saltou 25% e o consumo de drogas explodiu como nunca antes na história (veja a matéria). Esse amontoado de estímulos fez com que as comportas do crime se abrissem e ele se derramasse na direção da área rural, tradicionalmente mais tranquila do que os grandes centros. “Criou-se um cenário de tempestade perfeita”, compara Jeff Asher, consultor de segurança pública de Nova Orleans. A polarização que parte o país ao meio deu sua contribuição ao problema: ela não só acentuou o aumento da violência racial — em Chicago, 42 pessoas foram assassinadas nas duas semanas (um recorde em tão pouco tempo) que se seguiram à morte do negro George Floyd, com o pescoço comprimido pelo joelho de um policial branco, em Minneapolis — como colocou em xeque a ação da polícia, insuflando uma crise de autoridade que aprofundou a insegurança. Em Portland, um dos epicentros de contestação da maneira como as forças de segurança agem, mais de 200 policiais se demitiram alegando falta de condições de trabalho.
Por mais que as cenas violentas sejam chocantes, os Estados Unidos ainda estão longe de enfrentar hoje uma onda de crimes como a que varreu o país entre os anos de 1970 e 1990 e elegeu políticos linha-dura, como Ronald Reagan. Um dos marcos do período foi a tolerância zero instituída pelo prefeito Rudy Giuliani em Nova York, em 1994 — repressão inflexível a pequenos crimes, com o objetivo de promover o respeito à legalidade. A tática fez desabar as estatísticas de crimes e foi copiada em toda parte. Por outro lado, a população carcerária explodiu e a truculência policial se intensificou, tornando-se um dos gatilhos para os roubos, homicídios e tiroteios de agora. Junto com a recuperação econômica, que anda mais lenta do que se gostaria, o governo de Joe Biden, ao que tudo indica, vai ter um trabalhão para reverter o estrago provocado pelas fraturas expostas que os últimos anos abriram na sociedade americana.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767