Obras de Paris podem ajudar a dissolver fronteira entre subúrbio e centro
Aproveitando o ensejo da Olimpíada, em julho, a cidade dará uma inédita injeção de recursos nas bandas do distrito de Saint-Denis, ao norte
O período conhecido como gran siècle foi marcado pela megalomania de Luís XIV, o monarca francês que se apresentava como Rei Sol e acabaria por canalizar uma montanha de moedas para obras envoltas na ambição de que fossem um reflexo de sua própria grandeza. Em meio a esse impulso, ele mandou erguer, em 1670, uma muralha no entorno de Paris, para facilitar a coleta de impostos dos que para ali afluíam para vender suas mercadorias, e, assim, criou um paredão que isolava a imensa área fora dele. No século XIX, Victor Hugo, o escritor com um aguçado olhar para o frenesi urbano à sua volta, notou que aquela zona que viria a ganhar o nome de banlieue, o subúrbio parisiense, vivia vazia, sem se avistar por lá vivalma, sobretudo à noite, quando parecia “mais selvagem que uma floresta”. Aí vieram a industrialização e, depois da Segunda Guerra, as grandes torres de apartamentos, erguidas na periferia para alojar trabalhadores vindos da África. Essa paisagem sempre contrastou com a dos predinhos e cartões-postais que enfeitam a Cidade Luz, compondo uma zona de índices socioeconômicos mais baixos e pouco investimento — o mesmo mal que castiga grandes centros mundo afora, inclusive no Brasil.
Um dos desafios do urbanismo moderno é justamente dissolver a fronteira que separa os efervescentes centros dos subúrbios mais empobrecidos — um salto necessário para melhorar a vida das pessoas e destravar as engrenagens da economia nos vastos territórios que formam as regiões metropolitanas. É o que tenta fazer agora Paris, aproveitando o ensejo da Olimpíada, em julho, para dar uma inédita injeção de recursos nas bandas do distrito de Saint-Denis, ao norte, onde o Stade de France abrigará as provas de atletismo e novas instalações receberão a natação. É lá ainda que fica a Vila Olímpica, que se converterá em moradia a valores razoáveis. Escolas e condomínios degradados estão sendo repaginados, ao mesmo tempo que os tratores derrubam galpões industriais há meio século ociosos para ceder lugar ao verde e abrir caminho para que as pessoas, também lá, alcancem o Rio Sena a pé. “Os Jogos são uma oportunidade única para dar um incentivo às áreas mais abandonadas da Grande Paris”, disse a VEJA a prefeita Anne Hidalgo, que canalizou 80% dos gastos olímpicos para as franjas da metrópole.
O projeto parisiense contém um elemento que, no olhar dos especialistas, é vital para derrubar a barreira invisível que separa centro e periferia — a ampliação da rede de transportes. Neste caso, ela está centrada no metrô (que nasceu em 1900 com o objetivo de ombrear com o de Londres, nos trilhos desde 1863), cuja expansão pretende adicionar 68 estações que interligarão os subúrbios e tornarão bem mais ligeira a esticada viagem que os separa das áreas nobres. Batizado de Grand Paris Express, o plano, previsto para deixar 100% das pranchetas até 2030, é tocado com uma bolada de 45 bilhões de dólares — aporte que, conforme estudos, tende a se reverter em prol da economia. Afinal, isoladas numa terra de escassa oportunidade, as pessoas acabam tendo menos acesso a educação, saúde, emprego, e ficam alijadas das atividades criativas.
Em paralelo, Paris recém criou um regime fiscal vantajoso para atrair empresas aos subúrbios. O resultado mais concreto até agora é a decisão da Tesla, de Elon Musk, de fincar sua base francesa em outro desses distritos, Saint-Ouen, o que certamente trará gás a uma área onde, salvo exceções, quem mora no Centro não pisa. “Paris e sua periferia são dois mundos muito diferentes. A ideia é acabar com essa divisão”, diz a historiadora Isabelle Backouche, da École des Hautes Études en Sciences Sociales.
A tentativa francesa pode se desdobrar no que tantos centros urbanos que seguem trilha semelhante buscam, com resultados ainda pontuais — todos estão de olho no fomento de mais polos de desenvolvimento. Foi ao longo do século XX que o fenômeno das periferias se consolidou na Europa, na Ásia e na América Latina. Enquanto as zonas centrais ofereciam bons empregos, escolas e opções de entretenimento, o custo de vida disparava, e os mais pobres se viam obrigados a procurar uma moradia que coubesse no bolso — daí o inchaço dos subúrbios. Como um princípio geral, já se provou acertado apostar as fichas no investimento público em infraestrutura nessas zonas, o que costuma vir seguido do interesse privado. “Verbas de governos têm sido bons indutores de progresso nas periferias quando aplicadas de forma transparente”, afirma Nils Scheffler, do Urban Innovative Actions, de Berlim.
Implantar um ciclo virtuoso de ocupação dessas áreas esvaziadas pelo marasmo econômico exige estratégias para torná-las convidativas. Em Hamburgo, na Alemanha, o governo flexibilizou leis de construção no antigo distrito portuário às margens do Rio Elba e conseguiu atrair para lá projetos arquitetônicos arrojados. Sede da Olimpíada de 2012, Londres concentrou esforços em impulsionar o East End, vizinhança antes lembrada pela ausência de incentivos. Fizeram ali uma série de parques e residências sociais, mas, prova de que não é trivial resgatar essas bandas esquecidas, as construtoras não conseguiram manter os preços baixos como o planejado. No Brasil, país com expressiva população nas periferias, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, defendeu uma recente lei da qual derivou a Zona Franca Urbanística, que fornece incentivos fiscais e relaxa as regras para novos empreendimentos na beira da violenta e depredada Avenida Brasil — a principal conexão dos subúrbios ao Centro. Diante do descaso de décadas, será duro reabilitar a via carioca. O desafio de virar a página do abandono e demolir muros históricos não é nada trivial, mas disso depende a existência de cidades mais justas e boas para viver.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888