Era para ser uma celebração e tanto. Mas, se não poupou milhares e milhares de vidas em todo o planeta, por que supor que a pandemia de Covid-19 se renderia — para usar um termo frequente no universo bélico — às comemorações dos 75 anos do fim da II Guerra na Europa, transcorridos na sexta-feira 8? Assim, foi com discrição que a data mereceu a lembrança oficial dos governos da Alemanha — cuja derrota assinala o chamado Dia da Vitória —, Inglaterra, França e Estados Unidos. Na Rússia, restaram os 10 000 fogos de artifício disparados durante dez minutos por canhões do Exército em Moscou. Não no dia 8, como os ocidentais, e sim na noite do sábado 9, como mandava a tradição soviética, pautada pela hora precisa, em solo russo, da assinatura da capitulação dos nazistas. O czar Vladimir Putin, com a popularidade castigada pelo avanço do novo coronavírus no país, suspendeu a exibição ao mundo de seu aparato militar, porém não abriu mão do foguetório — o reforço possível a seu pleito de maior reconhecimento global ao papel do Exército Vermelho, o primeiro a alcançar Berlim em 1945, e também ao sacrifício de 26,7 milhões de compatriotas no conflito. Ao Kremlin, dez nações do Leste Europeu fizeram chegar o outro lado dessa história — o da anexação e domínio soviético, que as tornaram satélites de Moscou nas três décadas de Cortina de Ferro. A promessa de liberdade e democracia do Dia da Vitória chegou lá com atraso — e, passados 75 anos, a sombra onipresente do Kremlin permanece.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687