O ditado americano “Quando chove, vira um dilúvio” deve estar martelando na cabeça de Donald Trump neste pandêmico 2020. Candidato à reeleição em novembro, o presidente americano, no começo do ano, livrara-se de uma incômoda investigação sobre relações impróprias com a Rússia, havia deslizado sem arranhões profundos por um pedido (rejeitado) de impeachment, surfava em uma economia de ondas gigantes e deixava para trás, nas pesquisas, todos os adversários que o desafiavam no Partido Democrata. Agora, o vento virou: com a popularidade contagiada pelo novo coronavírus, Trump acusa um golpe atrás do outro no Judiciário, no recuo de 5% do PIB no primeiro trimestre, na indiscrição de ex-amigos e até dentro de casa, em que uma sobrinha detalhou episódios desabonadores em livro que será publicado após longa batalha legal. Sem fazer nada a não ser lives de um escritório montado no porão de sua casa, o nada carismático Joe Biden, ungido candidato democrata à Casa Branca, está inimagináveis 14 pontos à frente de Trump nas pesquisas, com folga suficiente para, se a eleição fosse hoje, sair em primeiro tanto na votação popular quanto no Colégio Eleitoral.
Depois de cancelar coletivas e limitar viagens por causa da pandemia, Biden, 77 anos, organizou no fim de junho um evento com apenas 25 eleitores distribuídos em um enorme ginásio na Pensilvânia, para garantir o distanciamento. Trump fez piada do “entusiasmo zero” da plateia e, no dia seguinte, pretendia tripudiar sobre o adversário com uma multidão de apoiadores apinhados em um auditório fechado em Tulsa, no Estado de Oklahoma — bem ao gosto de quem acha exagero os cuidados para evitar o contágio. Pois o comício teve público menor do que o esperado (6 200, onde cabem 19 000). Trump foi golpeado por adolescentes que, via aplicativo TikTok, inflaram as reservas de lugares e as expectativas. “O melhor que Biden pode fazer é continuar trancado em seu porão e deixar Trump se afundar sozinho”, recomenda John Ferejohn, especialista em política da Universidade Stanford.
O começo da derrapada foi a resposta do presidente à pandemia, minimizando o problema e demorando para tomar decisões. Com isso, carregou os Estados Unidos para o topo do ranking, com 2,7 milhões de casos e subindo: na pressa de reabrir tudo, tática apoiada pela Casa Branca, houve um salto de 80% no número de infectados em duas semanas. Outro escorregão partiu da resposta tímida, quando não pendendo para o lado errado, diante da morte do negro George Floyd, asfixiado em praça pública por um policial, episódio que desencadeou protestos em massa contra o racismo. Não bastasse, John Bolton, ex-assessor para assuntos externos, escreveu um livro em que retrata o ex-chefe como um fanfarrão que bajula os “ditadores favoritos”, é engambelado pelo russo Vladimir Putin e trata mal quem não o adula, entre outras falhas. Para piorar, na Suprema Corte, onde instalou dois juízes conservadores, sofreu baques significativos no esforço para barrar imigrantes.
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Clique e AssineÉ nesse contexto que Biden, jogando parado, vai ganhando distância na corrida eleitoral, avançando inclusive em dois notórios redutos trumpistas: tem ligeira vantagem entre eleitores com mais de 65 anos e está praticamente empatado entre os brancos em geral. Examinando as probabilidades, a revista The Economist concluiu que o democrata tem 89% de chance de se tornar o novo presidente. “A maior habilidade política de Trump é a capacidade de atrair os holofotes. Nesta crise, ela está falhando, por falta de um plano e de políticas consistentes”, diz James Morone, cientista político da Universidade Brown, de Rhode Island. Nada disso quer dizer que Trump não pode se recuperar nos próximos meses e ganhar a eleição. Hillary chegou a ter 12 pontos de vantagem e, até as vésperas da votação, grande parte da mídia e dos institutos de pesquisa a apontava como provável vencedora. Deu no que deu.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694