Os desafios para o Chile após a vitória do esquerdista millennial Boric
Os outros países da região estarão de olho em sua tentativa de reverter a insatisfação e a divisão da sociedade
Diante da multidão em festa, sobre o palco montado próximo à Praça Baquedano, epicentro dos protestos por maior bem-estar social no Chile, Gabriel Boric abriu sua fala com saudações em espanhol, aimará, mapuche e rapanui (o idioma da Ilha de Páscoa), em um gesto de inclusão dos grupos indígenas do país. “Serei o presidente de todos os chilenos, tenham ou não votado em mim”, afirmou Boric, o esquerdista tatuado, inimigo da gravata e portador de TOC que venceu, com 56% dos votos (contra 44% do ultradireitista José Antonio Katz), a disputadíssima eleição de domingo 19. Descendente de croatas, nascido em Punta Arenas, no extremo sul do continente, o ex-líder estudantil — que desistiu da faculdade de direito no último ano para entrar na política — será o mais jovem presidente do Chile quando assumir, em 11 de março: 36 anos (completados em fevereiro).
Boric foi escolhido justamente pela juventude e por não ter laços com a política tradicional, mas o pouco traquejo torna ainda mais desafiadora a tarefa que tem pela frente: restaurar a confiança de uma população altamente insatisfeita e dividida, onde quem tem menos quer melhor distribuição de riqueza, saúde, educação e benefícios sociais e quem tem mais reivindica reforço da segurança pública, fim dos confrontos sociais e recuperação da economia, após um recuo do PIB de 6% em 2020. Enquanto um lado exige que seja abolido o neoliberalismo extremo implantado pela ditadura militar, o outro bate o pé para que nada mude, em nome do vigor econômico que ele suscitou. “Há um grande mal-estar social e desconfiança das instituições. Se o novo presidente conseguir reverter esse cenário, o Chile pode se tornar um farol para os outros países da América do Sul”, diz o cientista político Daniel Zovatto, diretor regional do Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral.
O movimento pendular das preferências do eleitorado, que alterna direita com esquerda no poder, tem estado especialmente ativo nestes tempos de polarização intensa da sociedade. Na América do Sul, hoje uma região de pouca relevância no mapa geopolítico global, o olhar distante das nações poderosas para os rumos regionais tem facilitado a ascensão de novatos, como Boric e o pouco conhecido professor rural Pedro Castillo, eleito presidente do Peru, e de ondas de protestos de rua contra a ordem estabelecida, como a que move organizações sindicais nas grandes cidades da Colômbia e a que insufla revoltas nas populações indígenas do próprio Chile e da Argentina. Neste cenário, a atuação de Boric — que fala em taxar grandes conglomerados e grandes fortunas para financiar maior igualdade social e, ao mesmo tempo, condena os governos ditatoriais de Cuba e da Venezuela — será, de fato, um teste para o que vem por aí em nível continental. No Chile, a mudança já começou: “companheira” (o termo que ele costuma usar) há dois anos do presidente eleito, a cientista política Irina Karamanos, 32 anos, quer distância do título de primeira-dama, que o próprio Boric, millennial que é, já declarou não fazer “o menor sentido”.
Publicado em VEJA de 29 de dezembro de 2021, edição nº 2770