Fazia oito anos que a União Europeia e a Celac, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, não se sentavam para conversar e, nesse intervalo, o jogo de poder no mundo passou por uma metamorfose. De olho na hegemonia mundial, a China superou os europeus como segundo maior parceiro comercial da região, atrás dos Estados Unidos, e os fortes vínculos da própria Europa com Pequim foram se esgarçando à medida que o dragão da Ásia se transformava em “rival sistêmico”. Para complicar, a guerra na Ucrânia comprometeu a Rússia como um dos principais fornecedores mundiais de combustíveis e minerais. Nesse cenário de perde-perde, foi com renovada mostra de simpatia e boa vontade que Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, saudou o recém-encerrado encontro dos dois blocos em Bruxelas. “Amigos que pensam como nós precisam se aproximar”, enfatizou, em meio à maratona de dois dias de reuniões de cúpula e diálogos bilaterais protagonizados por 33 líderes latino-americanos e caribenhos e 27 do grupo europeu.
Um mês antes do encontro em Bruxelas, Von der Leyen circulou por Brasil, Argentina, México e Chile carregando na mala um polpudo pacote de investimentos na região: 50 bilhões de dólares direcionados a mais de 135 projetos de infraestrutura e meio ambiente. As áreas beneficiadas vão da produção de vacinas avançadas até a extração de matérias-primas da transição para a chamada economia verde — o Brasil deverá receber 2,3 bilhões de dólares para investir em hidrogênio não poluente. “A União Europeia busca diversificar parceiros para ganhar autonomia”, diz Kai Enno Lehmann, professor de relações internacionais da USP. Em um encontro bilateral na cúpula, o bloco assinou dois acordos com o Chile que trocam acesso sustentável a recursos minerais por exportações europeias sem taxas.
Esse esforço de cooperação europeu faz parte do programa Global Gateway, que prevê, até 2027, investimentos de 336 bilhões de dólares em todo o mundo — uma espécie de Nova Rota da Seda europeia. Vai ser páreo duro competir com a original chinesa, um megaprojeto de 8 trilhões de dólares para conectar os continentes por rotas marítimas e terrestres e facilitar exportações de Pequim, que já tem 147 países a bordo. Enquanto a Europa dormia no ponto, o comércio dos países da Celac com Pequim cresceu 26 vezes em duas décadas, atingindo 310 bilhões de dólares. No Brasil, a participação de produtos chineses nas importações subiu quase 20% no período, enquanto a dos europeus caiu 10%. “Agora, os europeus parecem ter finalmente acordado”, diz Lehmann.
O encontro serviu também para tentar atenuar desconfianças em relação às intenções do bloco europeu, visto por muitos como fiel adepto da prática de puxar brasa para sua sardinha em detrimento dos interesses das nações menos desenvolvidas. Nesse contexto entra o debate sobre o acordo entre Mercosul e União Europeia, que não estava na pauta oficial da reunião com a Celac, mas fez parte das conversas mesmo assim. O pacto, assinado em 2019, após duas décadas de negociações, ainda não foi ratificado principalmente devido a uma lista de novos requisitos na área ambiental que os europeus incluíram no texto e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva qualifica de “ameaça” inaceitável. “Nossa ambição é resolver as diferenças que ainda existam o mais rapidamente o possível”, afirmou Von der Leyen após encontro com Lula. “O tom entre os líderes foi positivo quanto a tentar fechar o acordo este ano”, disse a VEJA um alto funcionário do Planalto, acrescentando que até o fim de agosto haverá uma nova rodada de negociações.
Sempre de olho em chances de sair do ostracismo mundial, o presidente Nicolás Maduro, da Venezuela, não foi convidado para a cúpula, mas em paralelo Lula juntou-se a líderes como o francês Emmanuel Macron para uma reunião com a vice dele, Delcy Rodríguez, e representantes da oposição — a primeira dos adversários em anos. Da reunião saiu um documento sem precedentes em que os europeus concordam em suspender o bloqueio econômico em vigor contra Maduro caso as eleições gerais do ano que vem sejam livres e monitoradas por observadores estrangeiros — duas exigências que Maduro terá imensa dificuldade para engolir. O mesmo pragmatismo se fez presente na declaração final conjunta em relação à invasão da Ucrânia, com uma vaga condenação geral dos efeitos do conflito, em vez da censura à Rússia, que os europeus preferiam. “Não foi o ideal, mas a Europa está disposta a fazer concessões para se aproximar da América Latina”, diz Guilherme Casarões, professor de relações internacionais da FGV-SP. Sabendo aproveitar, as chances são promissoras.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851