A cinco meses das chamadas “eleições de meio de mandato” nos Estados Unidos, que vão renovar todas as 435 cadeiras da Câmara de Deputados e um terço do Senado, o Partido Democrata esperneia para reverter as projeções de uma derrota fragorosa. Um dos instrumentos a seu dispor acaba de ser posto em prática: as audiências públicas da comissão que investiga o grau de planejamento prévio e o alcance da atuação pessoal de Donald Trump na inconcebível invasão do Capitólio, em Washington, por hordas trumpistas, em 6 de janeiro de 2021. O espetáculo — uma série em seis episódios a ser exibida ao longo de junho — estreou bem: 20 milhões de espectadores assistiram ao primeiro capítulo, transmitido ao vivo pela TV, em pleno horário nobre, na segunda 13. “Os eleitores vão ver até onde os republicanos estão dispostos a chegar para acumular poder”, torce o deputado Sean Patrick Maloney, presidente de campanha do Partido Democrata.
A comissão da Câmara que investiga o ataque, composta de sete democratas e dois republicanos desgarrados da liderança, afirma que abordou as 1 000 testemunhas e mais de 140 000 documentos com neutralidade, mas é evidente que o Partido Democrata espera que as revelações balancem os eleitores, se não levando a mudança de votos, pelo menos estimulando-os a sair de casa e ir às urnas no dia 8 de novembro. Para tanto, contrataram um executivo de televisão experiente — o ex-presidente da ABC News James Goldston, que ajudou a encaixar as audiências em seis episódios redondinhos, entre noventa minutos e duas horas e meia de duração.
Através de gravações bem editadas e de testemunhos ao vivo, a comissão abriu os trabalhos empenhada em deixar claro o que chamou de “tentativa de golpe” de Trump: no dia 6 de janeiro, horas antes de o Senado ratificar a vitória de Joe Biden na eleição presidencial, o então presidente fez um comício incendiário repisando a tecla de que a apuração tinha sido roubada e que o vencedor era ele, o que estimulou uma turba a praticar a invasão — que, de resto, segundo a narrativa da comissão, ocorreu de caso pensado. O espetáculo contou com um vídeo inédito de doze minutos que mostrou grupos extremistas liderando o cerco e testemunhos surpreendentes do círculo mais íntimo de Trump tentando convencê-lo da derrota. O ex-secretário de Justiça Bill Barr disse ter avisado o chefe de que a alegação de eleição fraudada era “besteira” e definiu seu estado de espírito como “desconectado da realidade”. Ivanka, a filha e assessora de Trump, apareceu confirmando que aceitou a avaliação de Barr (uma “manobra” da oposição, disparou o ex-presidente). Trump, segundo mostrou a comissão, ignorou apelos de aliados para desmobilizar os atacantes.
Na mesma linha de expor aos eleitores os supostos pecados dos republicanos, movimentos ligados ao Partido Democrata foram às ruas e à mídia protestar contra a eventual anulação do direito ao aborto por parte da Suprema Corte nas próximas semanas. A decisão está na ordem do dia e um documento sigiloso vazado (há quem diga que pelos democratas) deixou clara a tendência da maioria conservadora dos juízes nessa direção — o que contraria a convicção de 60% dos americanos que são favoráveis à livre opção pelo procedimento. O horror provocado pelo massacre de crianças por um atirador em uma escola do Texas — um dos vários nos últimos tempos — também acirrou a demanda por maior controle na venda de armas, bandeira democrata demonizada pelos republicanos (veja a matéria).
Na mira de toda essa movimentação estão as eleições de novembro, que vão eleger 435 deputados e 35 (de 100) senadores e, muito provavelmente, acabar com a precariíssima maioria democrata nas duas Casas: nove deputados, sendo alguns não muito confiáveis na hora H, e um senador, no caso a vice Kamala Harris, que dá o voto de desempate. Na situação atual, Biden não conseguiu ver aprovado nenhum de seus grandes projetos até agora. No Congresso que vem aí, a dificuldade deve ser maior ainda.
Longe das manipulações do ex-presidente, do debate conceitual sobre o aborto e da insanidade dos assassinatos em massa, o foco dos eleitores atualmente está mesmo congelado na inflação e no preço recorde da gasolina. Até dentro do Partido Democrata, irremediavelmente dividido entre uma ala moderada e outra mais à esquerda, a estratégia de ressaltar os podres republicanos levanta dúvidas. O senador Bernie Sanders, prócer socialista, acendeu o alerta recentemente: “Não se pode ganhar eleição com um adesivo que diz: ‘Bem, não estamos fazendo muito, mas o outro lado é pior’”.
Neste cenário complicado, Biden, a estrela-mor do partido, está afundado em um índice de desaprovação de 52%, sobretudo devido à situação da economia, sem perspectiva de melhora a curto prazo. “As investigações de 6 de janeiro são importantes por vários motivos, entre eles o registro histórico de uma ameaça à democracia americana. Mas a atenção dos eleitores estará voltada para o próprio bolso”, afirma Robert Shapiro, professor de ciência política da Universidade de Stanford. Olhando para o passado, apenas duas eleições de meio de mandato na história dos Estados Unidos deram ganhos ao partido no governo, a de 1998, graças a um boom econômico no mandato do democrata Bill Clinton, e a de 2002, quando o sentimento patriótico pós-11 de setembro favoreceu o republicano George W. Bush. Em 2022, ao que tudo indica, muita coisa vai mudar e tudo continuará igual em Washington. Ou pior.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794