Paralisado por denúncias de corrupção, Peru pode antecipar eleições
O presidente Martín Vizcarra anunciou um projeto para reduzir em um ano os mandatos políticos
O presidente peruano Martín Vizcarra elegeu o feriado das Fiestas Patrias — quando se comemora a independência do Peru — para fazer seu anúncio: um projeto que antecipa em um ano as eleições presidencial e legislativas, para julho de 2020, com a intenção de tirar o país da “crise institucional” em que se encontra. Escolheu a data a dedo, já que, de folga em casa, a maior parte da população estava grudada à televisão, acompanhando os Jogos Pan-Americanos de Lima. A iniciativa veio chacoalhar mais uma vez o terreno político do país andino, esburacado por seguidas denúncias de corrupção e com os quatro últimos presidentes enrolados no propinoduto latino-americano da empreiteira brasileira Odebrecht. “O Peru clama por um novo começo. Com essa ação, os alicerces da República serão reforçados, mesmo que isso signifique a saída de todos do governo”, conclamou.
Inclusive a dele próprio, que foi parar no cargo sem ter sido eleito para isso. Vizcarra, de 56 anos, era vice de Pedro Pablo Kuczynski, o PPK, economista considerado um sopro novo no panorama partidário do Peru que acabou destituído no início de 2018 e hoje cumpre prisão domiciliar por acusações de envolvimento indevido — ele também — com a Odebrecht. Um ano depois da posse de Vizcarra, o Peru passou pelo maior trauma de sua história moderna, com o suicídio de Alan García, duas vezes presidente, que disparou contra a própria cabeça quando a polícia chegou para prendê-lo (igualmente por corrupção).
A manobra de Vizcarra — que não seria permitida pelas leis brasileiras — é arriscada. O Peru tem uma só Casa legislativa desde os anos 1990, quando Alberto Fujimori extinguiu o Senado e, com ele, todo um sistema de negociação na aprovação de projetos. A limitação que isso impõe ao Executivo tem sido uma pedra no sapato dos presidentes pós-Fujimori. A proposta de antecipar eleições pode não passar no Congresso, dominado pela oposição. Mas a segunda parte do projeto do presidente requer que a decisão a ser tomada seja submetida a um referendo popular — e ele conta que aí reunirá o apoio necessário para reduzir todos os mandatos. “É uma jogada populista de defesa diante de um panorama partidário que ameaça a estabilidade do governo. Se conseguir a antecipação, Vizcarra sairá fortalecido, porque tem apoio dos peruanos”, diz Steven Levitsky, sociólogo especializado em América Latina da Universidade Harvard. Uma pesquisa realizada em abril pelo Instituto de Estudos Peruanos mostrou que 70% dos entrevistados concordam com o fechamento do Congresso e 84% desaprovam o desempenho da Casa.
A desconfiança dos peruanos em relação ao Legislativo e também ao Judiciário se intensificou após a revelação de uma rede de corrupção chamada de “colarinhos-brancos do porto”, com denúncias de envolvimento de juízes, procuradores e empresários. Em junho, Vizcarra pediu e obteve um voto de confiança do Congresso, onde o partido majoritário, Força Popular, é liderado por Keiko Fujimori, filha do ex-presidente também condenado pela Justiça, por crimes contra a humanidade. Em seguida, ele enviou ao Congresso um pacote de doze medidas anticorrupção, sendo a principal a transferência para a Suprema Corte da retirada de imunidade parlamentar, atualmente nas mãos dos próprios parlamentares. Partidos que não se toleram aliaram-se contra o pacote e, diante do impasse, Vizcarra tirou sua carta da manga. Como disse Júlio César ao cruzar o Rio Rubicão a caminho de Roma, “Alea jacta est”. A sorte está lançada.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646