Por que a Argentina tem resultados tão bons no combate ao surto
O governo começa a relaxar as regras, depois de implantar uma rígida quarentena e se sair muito melhor que o Brasil contra a pandemia
Na folclórica competição entre brasileiros e argentinos para ver quem é o melhor, a atitude mais prudente é não tomar partido e evitar que se acendam as paixões nacionais. Mas vamos combinar: no jogo de vida ou morte para conter a disseminação do novo coronavírus, os vizinhos do Sul arrancaram na frente e estão dominando o placar. Na segunda-feira 11, após quase dois meses de rigorosa quarentena, estabelecimentos comerciais e indústrias puderam abrir as portas graças ao primeiro relaxamento das regras de isolamento. A maioria das determinações não vale para a região metropolitana de Buenos Aires, onde se concentram 86% dos contágios. Além disso, todos os restaurantes, bares e escolas do país permanecem fechados e o acesso ao transporte público é restrito. Mas esse primeiro movimento de volta à vida mais ou menos normal, enquanto o Brasil ainda esperneia para manter a população dentro de casa, comprova o acerto — pelo menos até agora — da decisão do governo do peronista Alberto Fernández de priorizar o controle da pandemia, ainda que com isso o país tenha afundado mais no inferno astral econômico.
A Argentina mal havia entrado nas estatísticas da doença (mas já tinha as fronteiras fechadas), com 128 casos confirmados e três mortes, quando, em 20 de março, foi decretada a quarentena, cumprida à risca pela maioria dos 45 milhões de argentinos, sob pena de prisão ou multa equivalente a 7 000 reais. Uma raríssima união entre governo e oposição ajudou a reforçar a necessidade de isolamento no país de vida noturna vibrante e intermináveis bate-papos nos cafés. Na quinta-feira 14, a Argentina tinha quase 7 000 casos confirmados e mais de 340 mortes e registrava 60% dos leitos vagos nas UTIs, este um requisito essencial para o relaxamento social. Com tais resultados, aparecia em décimo lugar no balanço do contágio entre 22 países latino-americanos (o Brasil é o primeiro) e dava um chapéu em quantidade de mortes por 100 000 habitantes: menos de uma lá, contra seis aqui. O Estado de São Paulo, com uma população parecida, registra sete vezes mais contaminados e doze vezes mais mortes que a Argentina (veja o gráfico). O peronista Fernández, em linha cruzada com Jair Bolsonaro, alfinetou: “O Brasil é um grande risco para a região”. É duro admitir isso, mas infelizmente ele está correto.
A ampliação da retomada de atividades por lá ficou a cargo de governadores e prefeitos e os índices de contágio têm de ser monitorados continuamente. “O governo ganhou tempo para preparar o sistema de saúde e está evitando uma reabertura anárquica. A situação não está descontrolada, mas não erradicamos o vírus. Ele continua ali na esquina”, avisa o médico Adolfo Rubinstein, ex-ministro da Saúde, alertando ainda para o fato de que a média de dois testes por 1 000 habitantes (no Brasil é de 2,3) é insuficiente e que o contágio segue alto nas favelas de Buenos Aires.
O fim da quarentena na Grande Buenos Aires está previsto para 24 de maio, e pode ser prorrogado. Escolas e universidades só vão retomar as aulas em agosto ou setembro. O isolamento social total foi substituído por uma movimentação ultracontrolada, que permite aos portenhos que tenham final igual no número da carteira de identidade sair de casa, de máscara, nos dias pares ou ímpares — por no máximo uma hora e em um raio de 500 metros. Uma centena de ruas da capital se tornaram exclusivas para pedestres e as demais tiveram as calçadas alargadas e a velocidade máxima dos veículos reduzida à metade.
Em recessão há dois anos e esmagada sob uma dívida interna e externa monumental, a Argentina gastou até agora 700 bilhões de pesos (60 bilhões de reais) no combate ao vírus. A inflação recuou na pandemia, mas a previsão é que alcance 60% no fim do ano, desvalorizando ainda mais sua moeda. Na mesma segunda-feira da reabertura das atividades, menos de 15% dos credores aceitaram uma proposta do governo de renegociação da dívida pública. O quadro das mazelas pode se agravar em 22 de maio, quando vence o pagamento de 503 milhões de dólares em juros a credores externos. A não quitação levará a Argentina a mais um humilhante default — o terceiro em duas décadas. Segundo o economista Orlando Ferreres, as projeções para o PIB neste ano dependem de uma reestruturação da dívida: queda de 7,5% se houver, recuo de 10% se o acordo fracassar. Nesse jogo econômico, o time argentino ainda vai penar muito para marcar algum gol.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687