Por que Trump insiste em fingir que a eleição não acabou
O objetivo principal do presidente é preservar a força do trumpismo depois que sair da Casa Branca
O modo como Donald Trump está reagindo à sua derrota para Joe Biden na disputa pela Casa Branca pode dar a impressão de que ou ele ficou maluco, ou é completamente sem noção. Mas existem intenções políticas bem definidas na sua insistência em fazer de conta que a eleição ainda não está decidida. Além, claro, de uma certa dose de Trump sendo Trump, manifesta no firme propósito de ir embora a seu jeito e maneira, sem se ater a pormenores como tradição e civilidade. Reforçado pelos 73 milhões de votos em seu nome, um recorde só ultrapassado pelos 79 milhões de Biden, o presidente quer mostrar que não tem nada de lame duck, como são chamados os eleitos em fim de mandato — referência ao pato manco (a tradução do termo) que não consegue acompanhar o bando e se torna presa fácil dos caçadores.
Trump sai do governo com um patrimônio considerável em eleitores fiéis e blocos políticos firmemente fincados no Congresso e nos legislativos estaduais. É a eles que dedica os tuítes em letras maiúsculas com denúncias indignadas de FRAUDE, apuração MANIPULADA e “Não reconheço NADA”. “Há uma estratégia por trás desse comportamento, a de conservar a lealdade de seus fervorosos seguidores, arrecadar dinheiro e planejar seu retorno à Casa Branca”, diz Jeffrey Berry, analista político e professor da Universidade Tufts, em Massachusetts. O alvo imediato dos estrategistas da Casa Branca no momento é a eleição das duas últimas cadeiras do Senado em aberto, ambas na Geórgia. Ela está marcada para 5 de janeiro e é crucial para os dois partidos, visto que o placar está 48 a 50 a favor dos republicanos e, em caso de empate, o voto de minerva é da presidente do Senado — a vice democrata Kamala Harris. Bater o bumbo da fraude, do conservadorismo e do chefe durão faz parte do pacote de incentivos para que a base trumpista compareça em peso para votar (lembrado que Biden ganhou, por margem apertada, no estado).
Em paralelo, a equipe de advogados de Trump pede recontagem de votos em pelo menos seis estados e entrou na Justiça contra supostas irregularidades, nenhuma comprovada. “Trump é diferente de qualquer outro líder que já tivemos e abre precedentes perigosos”, alerta James Kloppenberg, professor de história americana da Universidade Harvard. A toada da fraude, que o presidente vem brandindo desde bem antes da eleição, transforma a derrota em injustiça e alarga ainda mais a brecha que se abriu entre os americanos pró e contra o presidente. Imbuídos, cada um, de sua verdade, ativistas rivais fizeram manifestações em grandes cidades no fim de semana. Debruçado no celular, Trump, o incendiário, tuitou à polícia: “Faça seu trabalho e vá com tudo”.
No contexto de um Trump que bate o pé e faz o que bem entende, o governo até agora nega aos assessores do presidente eleito acesso a dados dos órgãos do governo que possam facilitar a transição. Cartas de líderes estrangeiros dirigidas a Biden via Casa Branca ficam retidas lá e até imprescindíveis informações sobre planos de vacinação contra a Covid-19 deixam de ser compartilhadas. Só de birra, Trump, na porta da saída, demitiu primeiro o secretário da Defesa, Mark Esper, por não ter concordado em despachar tropas para conter manifestações, e, agora, Chris Krebs, diretor do Departamento de Segurança Interna, por causa da declaração de que esta foi “a eleição mais segura da história americana”. Enquanto o chefe fica no sai não sai, assessores deixam vazar que ele está montando um novo escritório de arrecadação de doações (o que cimentaria sua influência no partido) e se preparando para a volta triunfal em 2024. Como se vê, em 20 de janeiro Trump sairá do governo, mas, se tudo correr como ele planeja, o governo não sairá da área de influência de Trump.
Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714