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Primeiro mundo? Como a Dinamarca vai desmantelar comunidades de imigrantes

Plano habitacional que pretende acabar com supostas 'sociedades paralelas' vai demolir habitações e desalojar cerca de 11.000 dinamarqueses não-brancos

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h48 - Publicado em 1 ago 2020, 09h00
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  • A Dinamarca é amplamente conhecida pelo seu estado de bem-estar generoso e suas políticas progressistas. Com um sistema tributário progressivo, dinamarqueses obtêm acesso igual à previdência social, saúde e educação – seu índice de Gini, que mede a desigualdade social, é de 24,9, o terceiro melhor do mundo. Sua marca registrada de “flexigurança”, combinação de flexibilidade e segurança, permite mobilidade entre postos de trabalho e amparo a cidadãos desempregados. O conceito se manifesta em indicadores como o altíssimo PIB per capita, de 59.822 dólares, e a taxa de pobreza de apenas 0,2% de pessoas vivendo com menos de 5,5 dólares por dia (anos-luz à frente do Brasil, onde a proporção é de 20%). Contudo, o liberalismo parece secar quando se trata de imigração e integração.

    Políticas xenofóbicas crescem desde o histórico afluxo de requerentes de asilo na Europa durante a crise de refugiados de 2015. Agora, um controverso plano nacional, chamado “Uma Dinamarca sem sociedades paralelas: sem guetos até 2030”, pretende demolir bairros de baixa renda – em grande parte muçulmanos. A justificativa do governo: integrar comunidades de imigrantes à sociedade dinamarquesa. No entanto, moradores dessas áreas dizem que as medidas visam eliminá-las. Até agora, 28 bairros de baixa renda em todo o país foram classificados pelo governo como “guetos”, lista que é atualizada a cada ano desde 2010.

    Segundo o projeto, bairros tornam-se “guetos” com base em critérios de renda, porcentagem de pessoas empregadas, nível de educação e proporção de pessoas com antecedentes criminais. Contudo, o critério decisivo é que 50% dos residentes devem ser imigrantes “de países não-ocidentais” ou seus descendentes. A política é considerada xenofóbica porque um bairro com problemas semelhantes, mas ocupado por dinamarqueses brancos, não entraria na lista.

    “Não importa se você tem a renda certa, a educação certa, o emprego certo ou uma ficha criminal limpa. Ainda estará contribuindo para carimbar sua casa como um gueto apenas por causa de sua origem étnica”, diz Muhammed Emin Serbest, porta-voz do Centro de Relações Dinamarquês-Muçulmanas.

    Em maio de 2018, o governo propôs lidar com o que chama de “desastres urbanos irremediáveis” por meio de despejos e reconstruções em massa e, em 1º de janeiro de 2020, entrou em vigor a lei que permite a redução dessas moradias em pelo menos 60%. No que a mídia dinamarquesa chamou de “a maior experiência social deste século”, até 11.000 inquilinos podem ser desalojados. Para conseguir isso dentro de 10 anos, blocos inteiros serão esvaziados e convertidos em moradias particulares e cooperativas, das quais as pessoas de baixa renda serão barradas. Em algumas cidades, as construções serão demolidas sem substituição.

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    Os inquilinos atuais receberão acomodações alternativas, mas não será feito controle sobre localização, qualidade ou custo. Quem se recusar a se mudar será simplesmente despejado. Para piorar, a renovação será custeada por meio de um fundo pago pelos próprios moradores das habitações sociais.

    Moradores dos “guetos” também estão sujeitos a um conjunto diferente de regras. Em caso de alguns crimes, as multas podem ser dobradas. Outras violações, geralmente passíveis de multa, podem resultar em prisão. Houve até uma proposta da legenda de extrema-direita Partido Popular Dinamarquês (PPD) de que “crianças do gueto” deveriam ter um toque de recolher às oito da noite – mas foi rejeitada pelo Parlamento.

    “O projeto atribui aos imigrantes a culpa pela falta de integração, que na verdade é uma via de mão dupla”, diz Pontus Odmalm, cientista político e autor do livro The Party Politics of the EU and Immigration (“As Políticas Partidárias da União Europeia e Imigração”, em tradução livre). “Além disso, a xenofobia aparece na própria palavra ‘gueto’, que remete à Alemanha nazista.”

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    O governo insiste que os despejos de moradores mais pobres, com o objetivo de atrair inquilinos pagantes, abre oportunidades tanto para aqueles que permanecerem nas habitações sociais quanto para os realocados. Para as autoridades dinamarquesas, é preciso tirar as populações imigrantes de um “auto-isolamento improdutivo”, eliminando supostas “sociedades paralelas”.

    Por causa disso, foram projetadas outras leis para forçar uma integração. Crianças em idade pré-escolar devem passar pelo menos 25 horas por semana em jardins de infância públicos, em que a presença de imigrantes e seus descendentes deve ficar abaixo dos 30%, e passar por testes de linguagem. Caso contrário, benefícios sociais, como auxílio-moradia, podem ser revogados.

    “O problema real para o governo dessas supostas sociedades paralelas parece ser sua irritante visibilidade racial, que destaca corpos não-brancos”, diz Peter Hervik, professor de antropologia da Universidade de Aarhus, em Copenhague. “Acabar com essa visibilidade não resolve o problema da integração, mas deixa de incomodar dinamarqueses brancos.”

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    A nação outrora homogênea incentivou a entrada de trabalhadores estrangeiros nas décadas de 1960 e 1970 para atender às demandas de sua crescente economia. Em 2019, imigrantes não-ocidentais e seus descendentes formavam quase 10% da população de 5,8 milhões de habitantes, de acordo com o instituto de pesquisas Statistics Denmark. Contudo, a identidade do país permanece intrinsecamente ligada à sua herança branca, a exemplo das estatísticas do governo, divididas entre as categorias “pessoas de origem dinamarquesa” e “descendentes de imigrantes”.

    Nos últimos anos, diversas políticas anti-imigração da Dinamarca chegaram às manchetes internacionais. Em 2017, o ex-ministro da Imigração Inger Stojberg, do Partido Liberal, comemorou o aumento das restrições a imigrantes com um bolo. No ano seguinte, entrou em vigor uma proposta do PPD para proibir o uso de coberturas faciais em público, criminalizando mulheres muçulmanas que usam burcas. No final de 2018, o então governo de direita fechou um acordo para transferir imigrantes “indesejados” para uma ilha remota e desabitada, usada no passado para abrigar animais contagiosos. Esses últimos planos foram descartados pelo atual governo de centro-esquerda – mas o projeto para demolir bairros inteiros de comunidades imigrantes continua firme e forte.

    Um estudo de 2018 evidenciou que a Dinamarca ainda tem problemas de racismo sistêmico a serem superados. De acordo com a pesquisa, publicada na revista European Sociological Review, da Universidade de Oxford, há “uma discriminação considerável no processo de contratação” durante o recrutamento de empregos. Candidatos com nomes dinamarqueses tinham 52% mais chances de serem contratados em relação a pessoas com nomes que parecem provenientes do Oriente Médio.

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    Embora a Dinamarca esteja em sétimo lugar entre as 20 “democracias completas” do mundo, em lista elaborada pela revista The Economist com base em critérios como pluralismo político, gestão do governo e liberdades civis, é sintomático que sua pior nota seja em “participação política”. Excluídos da sociedade e reduzidos a mera força de trabalho, imigrantes têm pouca voz e protagonismo. E o plano “Uma Dinamarca sem sociedades paralelas: sem guetos até 2030”, ao contrário de integrar, está aprofundando ainda mais a marginalização de comunidades imigrantes.

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