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Putin sonha em repor Rússia no topo do poder global – mas cenário mudou

Esmagando a Ucrânia, o senhor do Kremlin se empenha em construir a ferro e fogo sua própria nova ordem mundial

Por Ricardo Ferraz, Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h31 - Publicado em 4 mar 2022, 06h00

Em setembro de 1990, o então presidente americano George Bush compareceu a uma sessão conjunta do Congresso para justificar sua ordem de intervenção militar no Golfo Pérsico. Saddam Hussein tinha invadido o Kuwait e Bush decidiu enviar tropas para impedir que o território rico em petróleo fosse anexado pelo ditador iraquiano. Apelando para a conhecida fórmula de transformar crise em oportunidade, Bush ressaltou em seu discurso que o país estava cumprindo o papel que lhe coube em vista das mudanças profundas ocorridas nas relações entre as nações do Ocidente e do bloco comunista, que começava a desabar após a queda do Muro de Berlim, um ano antes: o de garantidor de “uma nova ordem mundial, em que as nações do mundo possam prosperar e viver em harmonia”.

Dias antes, Bush comunicara seus planos a Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista da agonizante União Soviética, que lutava para manter alguma unidade no seu quintal e não fez objeção à investidura dos Estados Unidos no posto de guardião da paz planetária. Pois bem: o bloco comunista ruiu, a cortina de ferro se desfez e a visão americana, de fato, passou a ditar, com muito pouca resistência, os acontecimentos ao redor do globo. Agora, a abominável deflagração de uma guerra entre dois países na Europa, pela primeira vez em quase oitenta anos, mostra que aquele combinado com os russos deixou de valer. A pá de cal foi jogada por Vladimir Putin, o senhor do Kremlin, empenhado em construir a ferro e fogo sua própria nova ordem mundial.

arte mundi bipolar

Passada uma semana da invasão da fraca e desorganizada Ucrânia por um dos Exércitos mais poderosos do mundo, o presidente com ares de czar imperial (leia a coluna de Vilma Gryzinski, na pág. 33) já percebeu que repor a Rússia no topo da cadeia alimentar geopolítica não vai acontecer sem um alto custo — se é que vai acontecer. A ofensiva encontrou mais resistência do que o esperado. As sanções econômicas se acumulam, pulverizando o rublo e impactando o mercado financeiro doméstico. A nação russa, cuja preservação fundamenta as justificativas brandidas por Putin para estrangular o vizinho, está banida dos esportes e das artes. A vodca é boicotada e até o drinque da moda, o moscow mule, vem sendo rebatizado de “kiev mule”.

A opinião pública em peso se virou contra Putin, o que não é pouca coisa em tempos dominados pelas irrefreáveis redes sociais. O Conselho de Segurança da ONU aprovou uma raríssima convocação de emergência da Assembleia-Geral para discutir a guerra deflagrada por Moscou. Sem a presença de chefes de Estado, foi aprovada uma denúncia simbólica contra as ações da Rússia. A medida não vinculante tem por objetivo demonstrar que Putin está isolado. “Se a Ucrânia não sobreviver, a paz internacional não sobreviverá, as Nações Unidas não sobreviverão e não ficaremos surpresos se a própria democracia sucumbir”, disse Sergiy Kyslytsya, embaixador da Ucrânia na ONU. Em outro lance repleto de simbolismo, os diplomatas esvaziaram o plenário do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, durante pronunciamento do ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, que falava por videoconferência. Em mais uma iniciativa, 38 países, liderados pelo Reino Unido, encaminharam denúncia de “atrocidades” russas ao Tribunal Penal Internacional, em Haia.

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CONTRA E A FAVOR - Enquanto Biden (à esq.) ameaça, Xi põe panos quentes: interesses opostos estão em jogo no xadrez mundial -
CONTRA E A FAVOR – Enquanto Biden (à esq.) ameaça, Xi põe panos quentes: interesses opostos estão em jogo no xadrez mundial – (Saul Loeb/EPA/EFE)

Mesmo assim, Putin não dá sinais de recuar na campanha que, ao que tudo indica, preparou com cuidado nos últimos anos. Pelo contrário, faz questão de posar sozinho à cabeceira de mesas imponentes — a mais recente, em reunião com seus assessores econômicos, tem cerca de 20 metros de comprimento —, bem distante dos interlocutores, posição que tem a vantagem extra de preservar a saúde, uma obsessão do mandatário, de quase 70 anos, que ainda quer mandar por muito tempo. “Esta não é uma crise isolada, e sim o início de uma intensa e perigosa nova fase nos esforços da Rússia para renegociar os termos da ordem vigente”, diz Bruce Jones, pesquisador do Brookings Institution e diretor do Projeto sobre Ordem e Estratégia Internacional.

Em vez de uma extensão da Guerra Fria — o longo período em que o arsenal de ogivas nucleares dos dois rivais dissuadia trocas de tiros —, especialistas veem no belicismo de Putin a intenção de impor uma “paz quente”, em que entrar e subjugar pelas armas países soberanos não está fora de cogitação. Em pleno século XXI, o presidente russo reedita, com frieza e petulância, uma tática de acumulação de poder comum no século XVII e desde então reprovada no mundo civilizado. Indo além nessa trilha, em ameaças disfarçadas, o neoczar despertou até o temor adormecido de um ataque nuclear, embora se considere improvável que chegue a esse ponto.

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RESISTÊNCIA - Blindado russo em chamas ao lado de soldado morto em Kharkiv: dificuldade inesperada nos primeiros dias -
RESISTÊNCIA – Blindado russo em chamas ao lado de soldado morto em Kharkiv: dificuldade inesperada nos primeiros dias – (Sergey Bobok/AFP)

A chamada distensão, momento em que a URSS enfraquecida começou a se aproximar do Ocidente, teve seu gesto mais simbólico em um encontro em Genebra, em 1985, entre Gorbachev e o republicano Ronald Reagan, ambos sorridentes e afáveis. Antevia-se ali o mundo novo que se descortinaria com a queda do Muro de Berlim, o desmoronamento soviético e a ascensão dos Estados Unidos para o topo do poder geopolítico. A Rússia, àquela altura, era uma sombra do que havia sido (ainda que armada até os dentes). Putin, há 22 anos no poder, arregaçou as mangas para pôr a casa em ordem, tratando de, ao mesmo tempo, sufocar a oposição e garantir um Parlamento obediente. Enquanto cuidava disso, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), braço armado criado pelo Ocidente para se contrapor ao Pacto de Varsóvia (àquela altura extinto), passou de doze para trinta países-membros (veja os mapas), incorporando nações da Europa Oriental, como a Polônia, e ex-satélites grudados na Rússia, como a Moldávia e a Letônia.

Tendo se assegurado no poder, Putin voltou os olhos para essa suposta ameaça às suas fronteiras. Em nome da preservação de sua zona de influência, invadiu e dobrou a Geórgia quando o país se dispôs a aderir à aliança ocidental, em 2006. A Ucrânia entrou no radar em 2014, quando uma “revolução laranja” depôs o governo pró-Rússia e também voltou os olhos para o Ocidente. A Rússia reagiu despachando suas tropas para a Crimeia, província de maioria russa na ponta sul do país, que invadiu e anexou — sem muita indignação do resto do mundo, diga-se. Supõe-se que a partir daí passou a planejar a invasão total, à espera do melhor momento — que julgou ser agora, no abatido e polarizado mundo pós-­pandemia. Se subjugar a Ucrânia, sobreviver às sanções e superar a atual condição de pária, terá, como queria, recolocado a Rússia no centro das decisões mundiais. Não será, no entanto, a volta ao passado com que tanto sonha.

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DISTENSÃO - Gorbachev e Reagan, 1985: quatro anos depois, a queda do Muro de Berlim selou o fim da URSS -
DISTENSÃO – Gorbachev e Reagan, 1985: quatro anos depois, a queda do Muro de Berlim selou o fim da URSS – (Photo 12/Universal Images Group/Getty Images; Gerard Malie/AFP)

Os Estados Unidos, país mais poderoso do mundo, está partido ao meio, refém de uma barulhenta e obstinada direita nacionalista que se empenha em romper princípios e laços consolidados (seu patrono, Donald Trump, por sinal, não esconde a admiração por Putin). Essa mesma direita, nascida dos movimentos tectônicos pós-URSS e disseminada pelo planeta, forma hoje um bloco que sonha em dar as cartas no xadrez internacional. A União Europeia, embora tenha se unido a Biden na reação contra a guerra na Ucrânia, segue uma agenda própria, à qual se contrapõe a Grã-Bretanha, desgarrada da UE pelo Brexit. Acima de todos paira, com garras afiadas e mal disfarçada ambição hegemônica, a China de Xi Jinping.

Putin, antes de dar seu bote, aproximou-se de Xi — os dois se declaram “melhores amigos”, antecipam um “futuro em comum” e Pequim, até agora, evitou condenar abertamente a invasão da Ucrânia. “Xi Jinping pode ter cometido um grave erro de cálculo. Servir de ponto de apoio para a Rússia neste momento tem um peso muito maior do que defender a pequena Coreia do Norte”, alerta Patricia Kim, pesquisadora do Center for East Asia Policy Studies, de Washington. O gesto do presidente russo, curiosamente, traz à mente a histórica visita de Richard Nixon a Pequim: há exatos cinquenta anos, o americano apertou a mão de Mao Tsé-tung — justamente para reforçar sua posição diante da então URSS.

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Era outra China, muito menos poderosa, mexendo os pauzinhos para se encaixar entre os dois donos do mundo. Hoje, Putin sabe que a aliança com Xi só se sustenta enquanto não bater de frente com os interesses chineses. Os Estados Unidos, por sua vez, se esforçam para conter Putin cientes de que a ameaça maior está, isso sim, no Oriente. Neste mundo novo confuso e em formação, onde a ideologia tem pouca ou nenhuma relevância, Biden, em seu discurso anual sobre o Estado da União, arrancou aplausos ao chamar Putin de “ditador” e prometer que ele “pagará o preço” do ataque à Ucrânia. No intrincado jogo das potências, a sorte russa está lançada.

Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779

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