Quando a guerra chega aqui: o drama de famílias brasileiras com raízes no Líbano
A saudade deu lugar à preocupação e à angústia para milhares afetados pelo sangrento conflito que se desenrola no Oriente Médio
Com fortes dores nas costas, a aposentada brasileiro-libanesa Fatme Chaaito, 72 anos, passou o dia na cama, no sobrado de três andares que dividia com a família em Deir Antar, um povoado de apenas 6 000 habitantes no sul do Líbano. Era 23 de setembro, mais uma pacata segunda-feira, apesar de a tensão na fronteira com Israel, a poucos quilômetros dali, crescer a cada instante. No início da noite, ela e a família foram surpreendidas por buzinas e alertas dos serviços humanitários: um ataque das forças de defesa israelenses era iminente e as pessoas tinham de deixar suas casas imediatamente. Fatme embarcou em uma van com três netos e a nora. “Saímos com a roupa do corpo e um par de chinelos”, conta. Já em segurança, ela soube que pouco depois dois foguetes caíram perto de seu quintal, explodindo um carro e comprometendo a estrutura do imóvel.
Levada para Beirute, a família se alojou em casas de parentes até conseguir embarcar em um dos cinco voos realizados até o momento pela Operação Raízes do Cedro, organizada pelo governo para resgatar os brasileiros no país. “Aqui é minha segunda casa”, diz Fatme, abrigada no apartamento de uma sobrinha, em Santos. “Mas ainda estou preocupada, porque meu tio e primos não quiseram vir.”
Histórias como a de Fatme fazem o atual conflito entre Israel e o Hezbollah, milícia xiita que opera como um Estado paralelo no Líbano, repercutir com estrondo no Brasil, onde a colônia libanesa, calculada em até 10 milhões de pessoas (incluindo descendentes até a segunda geração), tem quase o dobro do tamanho da população do país árabe, de 5,2 milhões — um vínculo neste momento dominado pela angústia e altos níveis de tensão. Com militantes e armas encravados ao longo da linha no sul libanês que faz fronteira com Israel, em ameaça constante, o Hezbollah deslanchou há um ano uma campanha de bombardeios esporádicos, invariavelmente revidados, em solidariedade ao grupo Hamas — cujo chefe, Yahya Sinwar, foi assassinado na quinta-feira 17 — e aos palestinos da Faixa de Gaza, território que Israel transformou em terra arrasada em represália pelo bárbaro atentado que matou 1 200 pessoas e sequestrou 260 em 7 de outubro do ano passado. As explosões já haviam provocado a remoção de cerca de 100 000 moradores civis no lado libanês e de 60 000 no israelense.
Invocando a necessidade de preparar a volta dos civis para suas casas em segurança, o governo de Israel, no final de setembro, iniciou um bombardeio em larga escala no bairro de Beirute sob controle do Hezbollah, matando seus líderes, enquanto quatro companhias do Exército entravam por terra no país vizinho, pela primeira vez desde 2006. De uma hora para outra, a vida de 20 000 brasileiros que moram no Líbano virou de cabeça para baixo e o horror da guerra se refletiu a mais de 10 000 quilômetros de distância, entre famílias daqui em busca de notícias de parentes. “Recebia imagens de casas que viraram pó e não conseguia dormir, imaginando que o pior poderia acontecer”, relata Chadia Chaaito, filha de libanês, que também está agora abrigando familiares em casa.
Como o caldeirão de hostilidades entre Israel e o Hezbollah passou quase um ano fervendo em fogo baixo, o governo brasileiro teve chance de preparar a operação de resgate dos brasileiros no país. “Estava claro, desde o atentado do Hamas e o início dos ataques israelenses em Gaza, que o alastramento regional do conflito era um risco concreto”, afirma o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. “Estive em Beirute no início do ano, conversei com líderes da comunidade e desde então, em conjunto com a embaixada, foram preparadas respostas para esse cenário, que se confirmou, infelizmente.”
Até a quinta-feira 17, 1 105 cidadãos foram retirados do Líbano em voos do KC-30 da FAB, um Airbus adaptado que comporta até 220 passageiros. Em razão de bloqueios dos sinais de satélite impostos por Israel para dificultar a trajetória dos foguetes inimigos, o avião é obrigado a voar sem GPS ao se aproximar de Beirute, seguindo apenas instruções da torre de comando. Por precaução, todas as luzes da aeronave precisam ser apagadas e os diversos serviços secretos são informados previamente de que se trata de um voo humanitário. Para quem está em solo libanês, chegar até o aeroporto também é um desafio, já que ele se localiza ao sul da capital, próximo ao bairro de Dahiya, área de frequentes bombardeios por ser controlada pelo Hezbollah. O empresário Rami Rkein, 40 anos, teve de fazer um caminho tortuoso, em meio a prédios destruídos, até embarcar no primeiro voo de repatriação, deixando os pais idosos em Beirute. “Quando pousamos em São Paulo, foi muito emocionante”, diz ele, que reencontrou a mulher e o filho.
Não há uma previsão de quantos voos ainda serão realizados. Uma consulta feita pelo Itamaraty sobre pedidos de ajuda recebeu cerca de 7 000 respostas, mas nem todos solicitaram retorno e a expectativa é que cerca de 3 000 queiram ser repatriados. A alta demanda tem feito os diplomatas e funcionários da embaixada brasileira virarem noites organizando a papelada para formar as listas de passageiros. Leni Souza, 47 anos, está inscrita, mas até agora aguarda uma resposta oficial. Casada com um libanês, ela deixou a casa às pressas com as três filhas — duas gêmeas de 13 anos e uma de 20 — após receber uma ligação do marido e, quando se encontraram, pegaram a estrada em direção ao norte, enquanto viam foguetes cruzarem o céu. “Vim para o Líbano atrás de mais segurança e melhor educação para as crianças. Nunca pensei que fosse enfrentar algo assim”, diz. Sem ter para onde ir, Leni conta que recebeu ajuda de um estranho que se compadeceu ao notar seu desespero, em um posto de gasolina. “Ele nos ofereceu sua casa nas montanhas, onde permanecemos.” Durante a conversa com a reportagem, era possível escutar o som das bombas ao longe. Em Assis Chateaubriand, no interior do Paraná, a irmã de Leni faz o possível para controlar o pânico. “Nem tomando calmantes consigo dormir. Às 4 da manhã já começo a mandar mensagem para ela”, afirma Juraci Dias, 47 anos. “A preocupação é tanta que choro o dia inteiro.”
Os relatos que chegam do Líbano, um país que já se encontrava em situação periclitante, sem governo e com a economia em frangalhos, dão conta de uma ofensiva mais implacável do que a de 2006, quando tropas israelenses também cruzaram a fronteira e lá ficaram por trinta dias. Desta vez, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ordenou ataques em série no sul do país, onde o Hezbollah se concentra — a cidade de Nabatieh chegou a ser bombardeada nove vezes em apenas meia hora — e tanques entraram até em um quartel da Unifil, a missão de paz da ONU que, ao fim da guerra anterior, recebeu e não cumpriu a missão de criar uma zona livre de conflito entre o Rio Litani e a fronteira com Israel. O governo israelense encaminhou uma solicitação formal para que os capacetes azuis que integram a força deixem de vez o local, por estarem servindo de escudo para militantes xiitas, mas não foi atendido. Em três semanas de ofensiva, 1 milhão de pessoas, o equivalente a um quinto da população, deixaram suas casas, boa parte se alojando em algum dos 1 000 abrigos improvisados em escolas e em prédios públicos, que estão lotados.
No total, o Ministério da Saúde libanês calcula que 10 000 pessoas ficaram feridas e 2 000 morreram até agora. Entre as vítimas fatais estão dois adolescentes brasileiros. O Itamaraty tenta confirmar a morte de outras três pessoas de uma mesma família e investiga o destino de uma provável sexta vítima. Quem sobrevive em uma situação dessas pode sofrer abalos psicológicos graves. “Pesquisas mostram que a maioria das pessoas demonstra resiliência em contexto de guerra, mas eventos desumanos costumam causar reações adversas como choque, medo, raiva, desorientação, perda de memória, lembranças indesejadas, fadiga e insônia”, explica Kamila Moratti, psicóloga do Médicos Sem Fronteiras. A brasileira Amany Cheaito, 30 anos, mudou-se para o Líbano em 2015, em busca de uma nova vida. Lá, conheceu o marido, teve três filhos e se tornou madrasta de outras duas crianças. Após os ataques, todos fugiram para a Europa. “Não sei o que pensar sobre o futuro”, desabafa ela. “Hoje estamos aqui. Amanhã, não sabemos.”
Quem tem de partir de repente, com a roupa do corpo, muitas vezes sente a perda da vida como era antes como se fosse a de um ente querido. “Essas pessoas perdem seu lares, objetos de cunho afetivo, a identidade profissional, dinheiro, muitas vezes até a língua materna”, aponta a psicóloga Nazaré Jacobucci. “Refugiados, em geral, passam por um processo de luto”, completa. A guia de turismo Carina Kaddissi, 33 anos, seguiu com a mãe e o filho de 7 anos para os Emirados Árabes, onde a irmã mora, e agora, além da dificuldade de começar de novo, se preocupa com o efeito de tanta mudança no filho. “Se é difícil para os adultos, imagina para ele”, diz ela, que se esconde quando sente vontade de chorar.
Os efeitos das experiências traumáticas são especialmente prejudiciais para o desenvolvimento infantil. A exposição contínua a situações de estresse pode desencadear reações químicas no cérebro das crianças que prejudicam o avanço de habilidades socioemocionais, como empatia e afeto. “A maneira como a mente se desenvolve na infância depende muito do contexto social”, explica Gustaf Gredebäck, psiquiatra da Universidade de Uppsala e autor de um estudo publicado na revista Nature sobre danos sofridos por crianças em conflitos. “A forma como raciocinamos, a imagem do outro, a capacidade de interação social e o aprendizado são muito afetados pela guerra”, diz.
Já entre os adultos, os impactos psicológicos mais profundos giram em torno do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), que pode incluir a “síndrome do sobrevivente”, um estado emocional marcado pelo sentimento profundo de culpa por ter deixado gente querida para trás. Rami, o passageiro do primeiro voo, estava no Líbano para cuidar dos pais idosos quando a guerra estourou. Eles convenceram o filho a voltar para a família no Brasil sabendo do risco que correm. “É um sentimento terrível. As notícias chegam a toda hora e fico pensando: ‘Por favor, que não seja lá em casa’ ”, conta.
Com um olho no noticiário e outro nos aplicativos de mensagens, os brasileiros que têm laços com o Líbano acompanham o desenrolar da guerra misturando impotência e incredulidade, enquanto é escrito mais um capítulo na histórica relação com o país árabe. A aproximação teve início no final do século XIX, durante uma viagem de dom Pedro II ao Oriente Médio, em uma comitiva com mais de 200 pessoas. Atraídos pelo clima e pelos recursos naturais, que a trupe do imperador exaltou aos quatro cantos, os primeiros imigrantes libaneses no Brasil percorriam o interior como mascates, das fazendas de café em São Paulo às plantações no Paraná, levando tecidos, bijuterias e outros artigos. Aos poucos, diversificaram suas atividades, sempre se dedicando principalmente no comércio.
Muitos voltaram para ajudar a reconstruir um país multiétnico — muçulmanos xiitas e sunitas e católicos maronitas dividem o poder —, que enfrenta sucessivas guerras desde a década de 1970. Sem muita chance de rápida solução para o conflito de agora, resta aos libaneses, de lá e de cá, a esperança de um dia ter paz para, de novo, se empenhar em recolocar o Líbano de pé.
Colaborou Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915