Quando os palcos dos teatros da Broadway, em Nova York, se iluminaram pela primeira vez após um jejum de dezoito meses, plateias sedentas da fulgurante coreografia dos célebres musicais se derramaram em aplausos e lágrimas de emoção — era um sinal da volta da Nova York tal qual a conhecemos. Interrompidas desde 12 de março de 2020 por causa da pandemia desmancha-prazeres, as apresentações que costumam atrair quase 15 milhões de pessoas todos os anos começaram a ser retomadas em meados de setembro, lotando os quarteirões semivazios ao redor da Times Square. Ao todo, dezenove musicais estão abertos ao público, número que deve chegar a 43 até o fim do ano, entre eles dezessete novas produções. “Fomos ovacionados do começo ao fim no dia da reabertura. Ficou difícil conter o choro. Nunca tinha experimentado emoção tão forte”, diz o ator brasileiro Paulo Szot, que havia estreado como o protagonista Billy Flynn no clássico Chicago pouco antes de o novo coronavírus fechar as cortinas.
Além da reabertura dos teatros, outros notáveis marcos da vida cultural de Nova York, como a Metropolitan Opera House, a filarmônica e o New York Ballet, estão retomando suas atividades — o célebre Carnegie Hall, cenário de alguns dos mais memoráveis shows das últimas décadas, tem a volta das atividades prevista para 6 de outubro. O redespertar da cidade que, sim, dormiu por algum tempo segue os protocolos conhecidos: para o público, uso de máscara e comprovante de vacinação ou teste negativo na entrada; para o elenco e a equipe técnica, proibição de contatos e autógrafos após as sessões e testagem duas vezes por semana. Algumas produções ainda reduziram o número de sessões semanais e encurtaram os shows para, no máximo, noventa minutos. Nada disso arrefeceu a energia dos fãs. “A Broadway é essencial para o espírito da cidade de Nova York”, proclamou o prefeito Bill de Blasio.
Estabelecido em meados do século XVIII, o circuito teatral não só dá cor e emoção à vida cultural de Manhattan, como também contribui significativamente para sua saúde econômica — um papel que, a partir de agora, será acompanhado com grande expectativa. Antes da pandemia, a indústria faturava 15 bilhões de dólares por ano e empregava mais de 90 000 pessoas. A movimentação do público ainda alimentava o comércio, os bares e os restaurantes da fervilhante região da Times Square. No refluxo do último ano e meio — o mais longo período de escuridão das marquises da Broadway —, 1 100 atores e técnicos foram dispensados e, apesar da injeção de 15 bilhões de dólares do governo na indústria do entretenimento, calcula-se que as produções teatrais tenham amargado um prejuízo de 5 milhões de dólares só em arrecadação na bilheteria. “Deixamos de receber salários assim que os espetáculos foram interrompidos e muitos colegas que não tinham fonte de renda alternativa foram obrigados a se mudar de Nova York, porque não conseguiam pagar o aluguel”, relata Szot, que garantiu o sustento com shows musicais na internet. Tampouco foi fácil para os artistas manter a forma e, agora, recuperar o ritmo após tanto tempo parados. “Meu maior desafio era ficar firme na disciplina e exercitar a voz todo dia, sozinho em casa”, diz o ator brasileiro.
O olhar para o futuro da Broadway é, em geral, otimista. Novas atrações, como o musical Six, sobre as seis mulheres do rei Henrique VIII, e a peça Pass Over, da dramaturga afro-americana Antoinette Nwandu, têm estado lotadas. “Há muito interesse e demanda reprimida, o que é um bom prenúncio do que está por vir”, afirmou Jill Furman, produtora de Hamilton. Ao contrário da antecedência de meses para a compra de ingressos no teatro pré-pandemia, porém, hoje há entradas disponíveis para sessões dali a uma semana — uma facilidade que a indústria sonha ver aniquilada assim que o governo liberar a entrada de turistas internacionais nos Estados Unidos, em novembro. Há indícios ainda de que a exibição de musicais nos serviços de streaming durante a pandemia e o investimento em diversidade, tanto no elenco como no tema dos espetáculos, poderão renovar o teatro e atrair um público mais jovem e curioso. “As manifestações contra a violência policial e as discussões sobre o racismo que inundaram as redes sociais foram incorporadas à Broadway, que abriu a temporada com o maior número de artistas negros da história”, diz Shanga Parker, professor de artes cênicas da New York University (NYU). É o novo normal fazendo sua estreia nos palcos e plateias de Nova York.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758