Relatório obtido por VEJA detalha a dramática crise financeira da ONU
Aos 80 anos, completados em 26 de junho, ela está mais desgastada do que nunca

Crises não faltam mundo afora, sendo as mais prementes hoje a guerra entre Rússia e Ucrânia na Europa e o bombardeio da Faixa de Gaza por Israel, pela capacidade de sacudir a geopolítica global. No embate mais recente, Israel e Estados Unidos atacaram o Irã, com foco em suas instalações nucleares, reativando o temor de que o conflito pudesse escalar para um desastre de grandes proporções. Como é de praxe nessas horas, a Organização das Nações Unidas (ONU), criada justamente para mediar e desarmar momentos de tensão internacional, foi acionada: convocou-se o Conselho de Segurança, onde embaixadores pronunciaram discursos contendo acusações mútuas. E, de novo, como tem sido a regra nos últimos tempos, o teatro diplomático não deu em nada — um cessar-fogo acabou sendo negociado diretamente entre israelenses, americanos e iranianos. O episódio deixou evidente uma perturbadora realidade: aos 80 anos, completados em 26 de junho, aniversário da assinatura da Carta das Nações Unidas, a ONU está mais desgastada do que nunca.
O refluxo de autoridade afetou, como era de esperar, as finanças da organização. Neste momento, não mais do que 112 dos 193 países-membros estão com as contribuições em dia, sendo o Brasil um deles. Pior: entre os 81 com repasses atrasados encontram-se justamente os Estados Unidos, de longe o maior doador — no início de 2023, os 13 bilhões vindos dos cofres americanos cobriam mais de um quarto do orçamento geral da instituição. De lá para cá, por razões diversas, a inadimplência passou a bater recordes e a situação financeira da ONU despencou a níveis dramáticos.

Um relatório interno obtido com exclusividade por VEJA mostra que no final daquele ano a organização apresentava balanço negativo de 859 milhões de dólares, um déficit que obrigou o secretário-geral, António Guterres, a cortar programas e congelar contratações — até elevadores e escadas rolantes da sede de Genebra chegaram a ser desativados. “Foi necessário iniciar 2024 com medidas rigorosas de preservação de caixa para reduzir e desacelerar os gastos. Quase ficamos sem dinheiro”, relata o documento. E antecipa: “2025 pode ser tão ruim ou pior do que 2024”.
Nascida em 1945, em um momento em que as feridas da Segunda Guerra Mundial ainda estavam em carne viva, a ONU tinha como propósito prevenir a repetição do maior conflito armado da história. Sua atuação visava promover o desenvolvimento mútuo e a resolução de divergências pela via da negociação e do direito internacional. Durante os longos anos da Guerra Fria, sua intervenção de fato foi crucial para aplacar conflitos na periferia do mundo com o envio de missões de paz e de ajuda humanitária para regiões conflagradas. Aos poucos, foi se consolidando uma nova ordem mundial calcada no multilateralismo, a força motora das Nações Unidas. O derretimento da União Soviética, no entanto, transformou o cenário global a partir do fim dos anos 1980, abrindo espaço para, décadas depois, atos unilaterais dos Estados Unidos, a potência hegemônica do Ocidente, e também da China e da Rússia, o que viria a abalar os alicerces da ONU. “As chances de cooperação vêm diminuindo, com países adotando estratégias mais individualistas, movidos por preocupações com sua própria segurança”, diz Oliver Stuenkel, pesquisador do Carnegie Endowment for International Peace.
Os problemas se acirraram com a Casa Branca de Donald Trump, cruzado da luta antimultilateralismo e crítico feroz da organização, que considera obsoleta e contrária aos interesses americanos. Ampliando investidas tomadas já no primeiro mandato para fechar a torneira de recursos, Trump assinou nos primeiros dias do atual governo decretos removendo o país da Organização Mundial da Saúde e congelando o repasse de 1,5 bilhão de dólares. “O contexto que enfrentamos é o mais difícil de todos os tempos”, reconheceu Tom Fletcher, chefe do Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários, em carta aos funcionários.

As contribuições de 2025 cobrem até o momento apenas metade dos 3,72 bilhões de dólares destinados no orçamento à manutenção da Secretaria-Geral, que reúne o setor administrativo e os órgãos especiais, escancarando a fragilidade de uma estrutura inegavelmente inchada, que congrega 37 000 funcionários em todo o mundo. A maior parte das dotações fixas — 5,6 bilhões de dólares — é canalizada para as onze missões de paz em áreas de confronto, onde atuam os capacetes azuis, soldados cedidos por diversos países e sustentados pela organização. Os programas humanitários têm orçamentos complementados por doações e dependem da boa vontade dos governos de plantão. Diante da redução dos recursos, Guterres implantou um plano de reestruturação, UN80, que, na prática, tem como principal providência passar a tesoura na folha de pagamento.
Seus efeitos já estão sendo sentidos. O Programa Mundial de Alimentos irá perder um quarto dos funcionários — 6 000 vagas — nos próximos dois anos e corte semelhante está previsto para a Organização Internacional para as Migrações. A Unicef, que trata de questões da infância, anunciou corte de 20% no seu orçamento. Outras agências vitais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), têm refeito cálculos para operar sob as novas restrições orçamentárias. “Os cortes são uma tentativa de tratar uma hemorragia com um pedaço de esparadrapo. A causa real do problema reside na paralisia política”, resume Thomas Weiss, autor do livro O Que Há de Errado com as Nações Unidas e Como Consertar.

A desidratação das contribuições dirigidas à ONU tem efeitos profundos na vida de países onde a atuação de suas agências é muitas vezes vital. No Sudão, palco de uma sangrenta guerra civil, apenas 13% dos 4,2 bilhões de dólares previstos para assistir a população pingaram nas contas até agora — entre outros efeitos, 250 000 crianças estão sem aula. Na República Democrática do Congo, onde uma trégua recém-anunciada com forças rebeldes ainda está por ser comprovada, os casos de violência de gênero subiram 38% com a descontinuidade de programas da ONU. Até na Ucrânia, prioritária na lista de ajuda humanitária, só 25% das solicitações foram atendidas. “Temos muito menos condições de exercer nossa função estabilizadora nessas áreas”, lamenta Filippo Grandi, chefe do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR).
Apesar das dificuldades, as Nações Unidas continuam sendo indispensáveis, até por sua condição de única instituição capaz de coordenar ações globais nas mais diversas áreas. Mas, para reaver protagonismo e autoridade na sua função primordial de garantir a paz e o desenvolvimento, sua estrutura precisa se adaptar aos novos tempos — a começar pelo Conselho de Segurança, a porta de entrada das grandes questões, onde os cinco membros com assento permanente exercem o poder de veto ao menor sinal de divergência. Só para ficar nos dois grandes conflitos em andamento, desde o início dos bombardeios em Gaza, em outubro de 2023, o governo americano vetou cinco resoluções que denunciavam ações extremas do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, enquanto a Rússia há três anos barra qualquer resolução contra sua invasão do território ucraniano. “O Conselho falha há algum tempo em exercer sua responsabilidade primordial pela manutenção da paz e da segurança internacionais”, confirma Richard Caplan, professor de relações internacionais da Universidade de Oxford. De pires na mão, enfraquecida e ainda tendo de conviver com Donald Trump — para quem a organização é “mal administrada” e “precisa pôr a casa em ordem” —, a ONU ainda deve passar por maus bocados antes de conseguir (se conseguir) se aprumar novamente.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951