Desenterrar escândalos sexuais e enterrar carreiras políticas é um enredo que se repete nos Estados Unidos, onde a sociedade, mais do que em outros lugares do mundo, não perdoa escapadas amorosas de figuras públicas. Ciente disso, o governador de Nova York, Andrew Cuomo, 63 anos, optou por não prolongar seu processo de execração: uma semana depois de confirmadas por investigadores independentes as denúncias de onze mulheres de que ele as apalpou, abraçou e beijou contra a vontade e lhes fez propostas indecorosas, anunciou sua renúncia ao cargo a partir de 24 de agosto. A saída nessas circunstâncias tem precedente — em 2008, o também democrata Eliot Spitzer deixou o governo ao se comprovar seu envolvimento com prostitutas. A diferença agora — que Cuomo bem que tentou, sem sucesso, usar a seu favor — é a dimensão que alcançou o pecado cometido por um homem divorciado desde 2005, de outra geração, que achava normal aproveitar sua posição de poder para passar a mão, encostar e se insinuar para mulheres jovens e bonitas, a maioria na sua folha de pagamento, sem efetivamente manter relações sexuais com nenhuma delas (ao menos até onde se sabe). O governador não se deu conta, ou não quis se dar, de que avanços indesejados não são mais desculpáveis, postos na conta das inconveniências que a mulher, por ser mulher, tem de aceitar. Deu no que deu.
O #MeToo, movimento desencadeado em 2017, estimulou as denúncias de abusos de poderosos contra pessoas em situação vulnerável no mundo todo, mas com especial empenho nos Estados Unidos, provocando uma onda que partiu de Hollywood e se espalhou pela política, pelo mundo dos negócios e até pela realeza europeia (veja o quadro). “Os americanos aos poucos deixam de enxergar o assédio sexual simplesmente como uma consequência inevitável da condição feminina e percebem que se trata de um crime horroroso, motivado pelo abuso de poder”, explica Asale Angel-Ajani, diretora do programa de estudos sobre gênero do City College de Nova York. A primeira acusação contra Cuomo apareceu no fim de fevereiro, quando uma ex-assessora postou em uma rede social um longo texto detalhando as carícias e insinuações que aturou do governador durante anos. Aberta a comporta, outras dez mulheres registraram queixas semelhantes. Em um dos casos mais graves, uma assessora executiva, cujo nome foi mantido em sigilo, disse que ele pôs as mãos embaixo da sua blusa para apalpar seus seios e lhe apertou as nádegas em diversas ocasiões, no que descreveu como “um padrão consistente de conduta indevida”.
Em sua defesa, Cuomo atribuiu as queixas — sempre reconhecendo a mágoa das vítimas e pedindo profusas desculpas — ao excesso de zelo. Dizia que só estava sendo calorosamente afetuoso, uma característica da sua personalidade. A secretária estadual da Justiça, Letitia James, não facilitou: mandou preservar todas as mensagens e e-mails referentes ao caso e entregou a apuração da veracidade das denúncias a dois juristas independentes. Após cinco meses de investigações, a própria Tish, como é chamada — a primeira mulher e a primeira negra a ocupar o cargo que já foi de Cuomo, advogada com fama de durona que já enquadrou as organizações Trump, Google, Facebook e outros gigantes —, tratou de divulgar as conclusões do relatório de 168 páginas. E elas foram devastadoramente claras: Cuomo fez, sim, tudo aquilo de que é acusado, e ainda manipulou e intimidou quem se dispusesse a abrir a boca. “A secretaria não tem poder para iniciar uma ação judicial. Mas as provas levantadas na investigação já levaram à abertura de pelo menos quatro inquéritos no estado, que em breve devem se tornar processos civis”, diz Bennett Gershman, professor de direito da Universidade Pace e ex-procurador do distrito de Manhattan. Com o governador encostado na parede, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e o próprio presidente Joe Biden, seu amigo pessoal, se manifestaram pela renúncia. Em paralelo, os deputados da Assembleia Legislativa — onde o estilo agressivo e imperial de Cuomo nunca foi bem recebido — puseram em movimento um processo de impeachment.
Filho de Mario Cuomo (1932-2015), nascido em uma família de imigrantes italianos, que se elegeu três vezes governador de Nova York e se tornou figura forte no Partido Democrata, Andrew Cuomo sempre se apresentou como seu herdeiro político e, no terceiro mandato, pretendia suplantar as vitórias do pai candidatando-se pela quarta vez, em 2022. Tinha cacife para se sair bem: nos primeiros meses da pandemia, quando Nova York virou epicentro do contágio nos Estados Unidos, ele tomou medidas rápidas e decisivas para manter a população dentro de casa e diariamente, na TV e nas redes sociais, fazia um balanço da crise e disparava críticas cortantes contra Donald Trump e o governo federal. Assim conquistou admiração em toda parte e 77% de aprovação dos eleitores. Antes das denúncias, porém, sua imagem já havia sido arranhada pela constatação de que seu governo manipulou para baixo o número de casos de contágio pelo novo coronavírus. Depois delas, prestígio e reputação desmoronaram juntos — embora, na despedida do cargo, continuasse a se apresentar como um sujeito incompreendido. “A meu ver, nunca passei dos limites com ninguém, mas deixei de perceber que os limites foram redefinidos. Não dei a devida atenção às mudanças geracionais e culturais, e devia ter dado. Isso é indesculpável”, argumentou.
A se julgar por escândalos anteriores, o tombo de Cuomo, estrela em franca ascensão, não tem volta. “Os danos à sua carreira dificilmente serão reparados e é pouco provável que volte a concorrer a qualquer cargo eletivo”, diz o sociólogo e analista político Robert Shapiro, da Universidade Columbia. Ironicamente, a insensibilidade do governador no trato de suas funcionárias acabou colocando duas mulheres em posição de destaque. Uma é a secretária Tish. A outra é sua vice, Kathy Hochul, 62 anos, política de carreira de quem nunca foi próximo — o que agora se reverte em fato positivo — e que vai se tornar a primeira governadora de Nova York. “O assédio sexual é inaceitável em qualquer local de trabalho, ainda mais no serviço público. Eu admiro muito a coragem das vítimas que decidiram fazer as denúncias e acredito em sua palavra”, escreveu ela em suas redes sociais após a publicação do relatório. Hochul administra, junto com a mãe, um lar temporário para vítimas de violência doméstica em sua cidade natal, Buffalo, e liderou uma campanha contra casos de estupro em universidades americanas. Novos tempos, novas atitudes. É bom que seja assim.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2021, edição nº 2751