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Rússia tira milhares de crianças da Ucrânia e as leva para o país

Usando adoções e sob promessas de uma vida nova, país de Vladimir Putin as transformam em espólios de guerra. Muitas querem voltar, mas não têm escolha

Por Simone Blanes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 22 out 2022, 13h12 - Publicado em 22 out 2022, 12h58
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  • Além da guerra em si, mais uma crise humanitária é preocupante entre a Ucrânia e a Rússia: a transferência de crianças ucranianas para o país de Vladimir Putin, que usando adoções, as transforma em espólios de guerra.

    Durante a primavera no hemisfério norte, enquanto as forças russas sitiavam a cidade ucraniana de Mariupol, crianças fugiram de casas coletivas e internatos bombardeados. Separados de suas famílias, eles seguiram vizinhos ou estranhos indo para o oeste em busca de uma suposta segurança no centro da Ucrânia. Mas lá, de acordo com depoimentos de crianças e testemunhas dados ao jornal The New York Times, eram interceptados pelas forças pró-Rússia em postos de controle ao redor da cidade e colocados em ônibus que se dirigiam para o território controlado pela Rússia.

    “Eu não queria ir”, disse Anya, de 14 anos à publicação norte-americana. Ela, que escapou de uma casa para pacientes com tuberculose em Mariupol, agora está com uma família adotiva perto de Moscou. “Mas ninguém me perguntou”.  Na pressa de fugir, a menina contou que deixou para trás um caderno de desenho contendo o número de telefone de sua mãe, de quem vivia separada e tinha apenas contato esporádico com ela antes da guerra. Tudo o que ela conseguia lembrar, porém, eram os três primeiros dígitos.

    Desde que a invasão da Ucrânia começou, em fevereiro, as autoridades russas anunciaram a transferência de milhares de crianças ucranianas para a Rússia para serem adotadas e se tornarem cidadãs do país. Na TV estatal, as autoridades oferecem ursinhos de pelúcia aos recém-chegados, que são retratados como crianças abandonadas sendo resgatadas da guerra.

    Uma garota tímida e apaixonada por desenho, Anya contou que sua família adotiva russa a tratou bem, mas que ela ansiava por voltar para a Ucrânia. Logo, porém, ela disse que se tornaria cidadã russa. “Eu não quero”, disse ela. “Meus amigos e familiares não estão aqui”. Ela e outras crianças descreveram um processo doloroso de coerção, engano e força quando crianças foram enviadas da Ucrânia para a Rússia. Juntos, seus relatos se somam a um crescente corpo de evidências de governos e reportagens sobre uma política de remoção e adoção que visa as crianças mais vulneráveis ​​nas situações mais perigosas.

    Transferir pessoas de um território ocupado pode ser um crime de guerra. Segundo especialistas, a prática é especialmente espinhosa quando envolve crianças, que podem não ser capazes de consentir. Autoridades ucranianas acusam a Rússia de perpetrar um genocídio, já que a transferência forçada de crianças, quando destinada a destruir um grupo nacional, é um ato de genocídio sob o direito internacional. As autoridades russas, no entanto, rebatem dizendo que seu objetivo é substituir qualquer apego infantil ao lar por amor pela Rússia.

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    A comissária russa para os direitos da criança, Maria Lvova-Belova, organizou as transferências e disse que ela mesma adotou uma adolescente de Mariupol. Ela, que está sob sanções ocidentais, disse que o menino estava com saudades de casa no início e até participou de uma manifestação de apoio à Ucrânia. “Ele ansiava pela casa em que cresceu, amigos e sua querida Mariupol”, escreveu a comissária no Telegram. “Mas as crianças logo começam a apreciar seu novo lar”, afirmou.

    O número exato de crianças levadas para a Rússia não está claro, mas autoridades ucranianas colocaram o número na casa dos milhares. Em abril, as autoridades russas anunciaram que mais de 2.000 crianças chegaram ao país. A maioria veio de casas de grupo e orfanatos em território ocupados. Nos meses seguintes, voltaram a anunciar centenas de novas chegadas.

    Embora o reassentamento de crianças de terras recém-ocupadas tenha sido até agora esporádico, o governo russo anunciou recentemente planos para reassentar essas crianças de forma mais eficiente, aumentando a perspectiva de muitas outras transferências.

    A tática de guerra da Rússia explora algumas das dinâmicas familiares mais íntimas. As famílias russas falaram da adoção como uma questão de patriotismo, mas também expressaram um desejo sincero de proporcionar uma vida melhor para as crianças. Enquanto isso, muitos pais ucranianos tentam recuperar seus filhos, mas outros não, seja por razões financeiras ou porque seus relacionamentos foram rompidos antes mesmo da guerra.

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    “Eles simplesmente levaram embora todas as crianças”

    A‌nya estava vivendo e se recuperando de tuberculose em uma casa de grupo em um campus arborizado com um balanço vermelho. Quando explodiram as janelas e portas do prédio, as crianças fugiram para o porão. Anya lia contos de fadas para os mais novos e passava o tempo desenhando.

    As crianças nos lares do governo são muitas vezes rotuladas de órfãs, mas a maioria tem família. A Ucrânia torna mais fácil para os pais que lutam contra doenças, abuso de substâncias ou dificuldades financeiras colocar seus filhos – temporária ou permanentemente – em instituições estatais. Segundo as Nações Unidas, cerca de 90.000 crianças estavam nessas casas antes da guerra.

    Muitos pais resgataram seus filhos do prédio de Anya. Outros não, seja porque não conseguiram atravessar a zona de guerra ou, como a mãe de Anya, eram inacessíveis.

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    Um voluntário ucraniano colocou Anya e as cerca de 20 crianças restantes em uma ambulância com destino à cidade de Zaporizhzhia, mas eles foram redirecionados em um posto de controle russo e acabaram com dezenas de crianças em um hospital na cidade de Donetsk, capital de uma região que a Rússia ocupa desde 2014. Esta região é o coração da política de remoção e adoção do país. Desde o início da invasão, o governo de Putin promoveu a transferência sistemática de crianças de orfanatos e casas coletivas da região. Mas uma a uma, as crianças desapareceram. “Eles simplesmente levaram todas as crianças que ficaram sem pais”, disse ele Vasyl Mitko, um funcionário da cidade de Nikolske.

    Os poucos pais ucranianos que conseguiram localizar seus filhos em Donetsk, reunir a documentação certa e entrar em contato com as pessoas certas tiveram a chance de reunificação. Mas mesmo assim, dizem as crianças e os pais, as autoridades pressionaram as crianças a irem para a Rússia voluntariamente.

    “Eles receberam a promessa de uma vida nova e maravilhosa”, disse Natalia, mãe adotiva de Mariupol. Seu filho adotivo de 15 anos concordou em ir para a Rússia. “São crianças de um destino difícil e facilmente enganados”, completou. Mas quando as crianças não tinham ninguém para chamar, ou quando os pais não podiam ou não queriam enfrentar a jornada para Donetsk, não tinham escolha, caso de Anya.

    Mas o governo russo coreografa cuidadosamente a imagem de Donetsk para Moscou. “Agora você está em casa, em um círculo de amigos”, disse o prefeito da cidade a um grupo de meninos de Mariupol, em vídeo publicado no Telegram. Autoridades russas em Donetsk também convidam repórteres para casas de grupos para testemunhar crianças recebendo celulares, presentes e roupas. A televisão estatal transmite a chegada das crianças a Moscou de trem.

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    Putin instituiu um processo simplificado em maio, permitindo a rápida nacionalização de crianças ucranianas. O primeiro grupo se tornou cidadão russo em julho, anunciaram autoridades. “Eu não reconheci aquelas crianças com quem viajamos em abril no trem para sua nova vida”, disse Ksenia Mishonova, a comissária de direitos da criança para a região de Moscou, em um comunicado. “Agora eles são nossos pequenos cidadãos!”

    Algumas crianças ficaram de fato órfãs ou abandonadas na Ucrânia e preferem viver na Rússia. Outros, como Anya, desejam voltar.

    Após mais de um mês, os repórteres do New York Times chegaram à mãe de Anya, Oksana, na Ucrânia. Sem emprego, sem acesso à internet, uma pequena pensão por invalidez e uma guerra acontecendo, ela disse que não tinha ideia de como encontrar sua filha. “Estou procurando em todos os lugares, mas não consigo encontrá-la”, disse ela, que não sabia que Anya havia sido levada para a Rússia.

    Repórteres disseram a Anya e Oksana como entrar em contato uma com a outra. A perspectiva de Anya voltar para casa, porém, não é certa. Autoridades ucranianas se calaram sobre como conseguiram dezenas de crianças de volta da Rússia. Mas Anya quer voltar.

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