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Sem filtros, Trump acirra o discurso na reta final da campanha

À medida que as eleições se aproximam, o presidente intensifica a truculência, o tom raivoso e as insinuações de fraude no pleito

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 15h14 - Publicado em 25 set 2020, 06h00

Ao morrer na sexta-feira 18, Ruth Bader Ginsburg, juíza da Suprema Corte admirada pela firmeza de suas posições progressistas, tinha 87 anos e um longo histórico de câncer. Seria uma morte muito lamentada, claro, mas não levaria a desdobramentos políticos exagerados — não faltasse pouco mais de um mês para a eleição presidencial e não estivesse Donald Trump atrás nas pesquisas e, em pleno modo Trump, movendo céus e terras para conquistar votos. O presidente anunciou que indicaria “sem demora” um substituto — aliás, uma substituta, “porque gosto mais das mulheres” — para a cadeira, agarrando a chance de preencher a vaga com alguém de perfil conservador (será sua terceira indicação para a Corte de nove juízes). Correspondendo às expectativas do chefe, o senador Mitch McConnell, líder da maioria republicana na Casa, prometeu a confirmação do novo nome a toque de caixa, antes da eleição de 3 de novembro. Nos comícios, as hostes trumpistas passaram a entoar o grito Fill that seat (preencha aquela vaga). E assim a morte de Ruth entrou para a máquina de moer carne da campanha de Trump pela reeleição.

Instalar uma maioria ideológica na Suprema Corte representa, se nada inesperado acontecer, muitos anos de conservadorismo pela frente nas mais relevantes decisões sobre a vida dos americanos, já que os cargos são vitalícios (leia a coluna de Roberto Pompeu de Toledo na pág. 98). A alteração pode ter implicações históricas ao dar ao mais alto tribunal do país a chance de reverter decisões prévias, como a legalização do aborto, em 1973, e desmantelar programas polêmicos como o Obamacare, que garante cobertura de saúde gratuita para 20 milhões de pessoas. Nesse sentido, a troca de guarda apressada tem grande potencial midiático entre eleitores religiosos e aqueles que não querem ver seus impostos facilitando a vida dos outros. Trump também não quis se comprometer com uma transição de poder pacífica, afirmando que o resultado final das eleições pode ser decidido pela Suprema Corte. “A estratégia de Trump é monopolizar o debate político com assuntos que reduzam o espaço nos noticiários do desemprego e dos 200 000 mortos por Covid-19”, avalia Darrell West, analista político do Brookings Institution, de Washington.

Na mesma linha está o embate com a China, agora encarnado no aplicativo de vídeos TikTok, que, por ser chinês e coletar dados de americanos, entrou para a lista de ameaças à segurança nacional. Uma ordem presidencial proibiu que ele fosse baixado a partir de domingo 20. Antes desse prazo, porém, Oracle e Walmart apresentaram à Casa Branca um plano de compra da operação americana do TikTok e Trump adiou a suspensão por uma semana, enquanto o governo avalia os termos da transação. O presidente acena com a exigência (que não tem a menor condição de fazer cumprir) de uma comissão de 5 bilhões de dólares ao Tesouro, por ter intermediado o negócio. A quantia seria usada para financiar um “ensino patriótico” (área em que o governo federal não pode interferir) em contraposição à “doutrinação da juventude pela esquerda”, que, segundo ele, resulta em mobilizações como o Black Lives Matter. “Pais americanos não vão mais aceitar a cultura do cancelamento e a repressão da fé e dos valores tradicionais em praça pública”, declarou em um comício na Carolina do Norte, para delírio da plateia. “Trata-se de mais aperto no parafuso da insegurança da classe média que mora nos subúrbios e teme os protestos. Esse tipo de fala encontra eco em parcelas consideráveis da população”, diz o historiador especializado em escravidão e segregacionismo Albert Broussard, da Texas A&M University.

Alvo constante de Trump, o voto pelo correio, uma prática estabelecida nos Estados Unidos, voltou nos últimos dias a frequentar os tuítes presidenciais na condição de maior responsável (sem prova alguma) do que pode vir a ser “a eleição mais fraudada da história”. A intenção de Trump, segundo seus detratores, é ter de antemão uma desculpa para lançar suspeitas sobre os resultados caso veja uma derrota no horizonte. A tática tem lá suas desvantagens: os eleitores republicanos que costumam votar pelo correio estão desistindo de fazê-lo, forçando o partido a despachar insistentes mensagens para que solicitem sua cédula com urgência. No plano internacional, onde a Casa Branca pouco se manifesta, a não ser para brigar com a China, a pressão da campanha levou Trump a, em uma semana atípica, celebrar em Washington um acordo alinhavado às pressas entre Israel e dois países árabes, requentar as pressões sobre o Irã e retirar do banho-maria em que fora posta a oposição a Nicolás Maduro na Venezuela — inclusive com uma visita-relâmpago do secretário Mike Pompeo a refugiados venezuelanos em Roraima.
Firme na posição de não se mexer muito para não estragar sua dianteira nas pesquisas, o candidato democrata Joe Biden, acenando com a necessidade de distanciamento, tem evitado comícios e participado apenas de encontros remotos ou com pouca gente. Seu discurso continua centrado no quesito em que o presidente é pior avaliado pela maioria da população: o combate à pandemia, um campo minado de falhas do Executivo que levou os Estados Unidos a ultrapassaram a marca dos 200 000 mortos. O primeiro de três debates entre os dois candidatos está marcado para terça-­feira 29. A previsão, atípica para este começo de outono no Hemisfério Norte, é de faíscas e trovoadas.

Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706

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