País de pouco mais de 30 milhões de habitantes, o Iêmen se situa em um ponto para lá de estratégico da Península Arábica: está debruçado sobre a entrada do Mar Vermelho, que desemboca no Canal de Suez e constitui uma nevrálgica rota comercial entre Ásia e Europa. Pois é justamente essa localização central que agora põe sob holofotes globais uma de suas tribos, os hutis. Apesar de muito barulhentos e bem armados, quase ninguém sabia de sua existência até que, justificando apoio aos terroristas do Hamas na guerra com Israel, começaram a promover ataques e sequestros de navios mercantes de nações ocidentais, em novembro passado, afetando dramaticamente o intenso fluxo de cargas. Em 12 de janeiro, Estados Unidos e Reino Unido reagiram disparando mísseis contra territórios controlados pelo grupo iemenita, e a temperatura subiu ainda mais. Os dias subsequentes têm sido de atos contra embarcações internacionais, desencadeando represálias. Na quarta-feira 17, os americanos atingiram pela quarta vez instalações hutis e deixaram no ar a dúvida: será que o conflito na Faixa de Gaza vai transbordar para aqueles lados do Oriente Médio?
Tudo pode rapidamente mudar, mas as análises de quem se debruça sobre a tensão nas águas do Mar Vermelho são de que o mais provável é que ela não escale aos níveis de uma guerra, já que não interessa nem ao governo de Joe Biden, desgastado pelo apoio dos Estados Unidos a Israel, nem ao próprio Irã, que municia os hutis. “Nós não queremos expandir isso”, disse o porta-voz do Conselho Nacional de Segurança americano, John Kirby. Os estragos, porém, são concretos. A série de ataques fez baixar em 90% o tráfego pela rota responsável por cerca de 15% do comércio marítimo mundial e encareceu as taxas de seguro e de remessas, forçando empresas a procurar alternativas para conduzir os bens asiáticos ao continente europeu — por ora, o jeito é contornar o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, trajeto quase dez dias mais lento. Na semana passada, o preço do petróleo subiu e as gigantes automobilísticas Tesla e Volvo paralisaram suas linhas de montagem na Alemanha e na Bélgica, respectivamente, devido ao atraso na entrega de peças. Até o Brasil pode sentir o baque, uma vez que 30% do comércio por navegação do país passa por aquelas águas.
Diante de tamanho risco às cadeias de abastecimento, os Estados Unidos, que antes não cogitavam se envolver militarmente no imbróglio, repensaram a decisão, passando a liderar uma força-tarefa de vinte países, a maioria europeus, para vigiar o Mar Vermelho e, se preciso, atacar. É um xadrez de potencial explosivo: o exército huti é mais equipado do que o do Hamas, com arsenal de 150 000 mísseis. “Os hutis estão transformando uma guerra localizada numa batalha global, que afeta a todos, ao menos economicamente”, avalia o historiador Sean Foley, do Middle East Institute, em Washington. E seus motivos vão muito além do propósito de se mostrar solidários ao Hamas. “Os ataques aumentaram sua visibilidade e popularidade”, explica o especialista.
Muçulmanos da vertente xiita, os hutis travaram sangrenta guerra civil contra os sunitas no poder de seu país, duelo que se arrastou por quase dez anos, opondo as duas grandes potências do Oriente Médio: a Arábia Saudita, pró-governo local, e o Irã, que armou os rebeldes, também impulsionados pelo suporte logístico e militar do grupo libanês Hezbollah. Em 2011, empunhando bandeiras em prol do extermínio de Estados Unidos e Israel e embalados pelos ventos da Primavera Árabe, os hutis capturaram a capital, Sanaa, mas o confronto estourou mesmo em 2014, com o dramático saldo de 350 000 mortos. Dois anos atrás, as partes selaram um acordo em que fatiaram o território do Iêmen — um cessar-fogo instável e com gosto de vitória para os hutis. Agora, a milícia da pobre nação às margens do Mar Vermelho ganha a cena como uma perigosa peça no já explosivo tabuleiro do Oriente Médio.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876