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Tiros contra negro deflagram nova onda de protestos nos EUA

Policiais atingem as costas de um homem, diante dos três filhos pequenos, e a tensão racial se instala de vez na campanha eleitoral

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 15h33 - Publicado em 28 ago 2020, 06h00

Desde que o novo coronavírus se infiltrou e proliferou nos Estados Unidos, as campanhas eleitorais em andamento reorganizaram sua estratégia e centraram esforços em dois únicos temas: pandemia e economia. Até que, no dia 25 de maio, um policial branco postou o joelho sobre o pescoço de um negro deitado no chão e o asfixiou, à luz do dia, diante de uma audiência angustiada. A bárbara morte de George Floyd em Minneapolis desencadeou uma onda de protestos por todo o país e pôs o racismo, mancha sempre latente na sociedade americana, de novo na ordem do dia, introduzindo um terceiro elemento no roteiro eleitoral. Nesse ambiente explosivo, a violência policial voltou a se manifestar no domingo 23, em Kenosha, cidade de 100 000 habitantes no Wisconsin (um dos estados cruciais na eleição), quando sete tiros foram disparados à queima-roupa contra o negro Jacob Blake, na porta do carro onde estavam três de seus seis filhos, de 3, 5 e 8 anos. Um vídeo captou a cena e as ruas voltaram a pegar fogo.

Blake sobreviveu, mas, segundo a família, um dos quatro tiros atingiu a coluna e ele corre risco de ficar paraplégico. Também houve perfurações no estômago, nos rins e no fígado e parte do intestino teve de ser removida. “Atiraram sete vezes no meu filho. Sete vezes. Como se ele não valesse nada”, disse, chorando, o pai dele, que tem o mesmo nome. Segundo o advogado encarregado do caso, Blake tentava acalmar uma discussão entre duas mulheres quando a polícia chegou. Abordado, ele deu as costas e caminhou em direção ao carro, seguido por dois agentes. Quando ia entrar, um deles o segurou pela camisa e atirou nas suas costas. Blake desabou no chão, diante dos olhos das crianças. De casa, na mesma rua, Raysean White filmou tudo e divulgou nas redes sociais. “Foi perturbador olhar pela janela e ver a polícia atirar naquele homem”, contou depois. “Se eu fiquei horrorizado, imagine o trauma dos filhos dele.”

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O COMEÇO – Policial asfixia George Floyd com o joelho: em plena pandemia, a morte bárbara reacendeu o movimento Black Lives Matter – (Darnella Frazier/Facebook)

Uma multidão saiu para protestar em Kenosha, em manifestação inicialmente pacífica que, à medida que a noite avançava, foi deixando um rastro de violência, com carros e prédios incendiados. O governador de Wisconsin, o democrata Tony Evers, declarou estado de emergência, decretou toque de recolher, convocou tropas da Guarda Nacional e afastou os policiais envolvidos. Mesmo assim, a mobilização prosseguiu, com manifestantes munidos de pedras e fogos de artifício entrando em choque com a polícia armada com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Na terça-feira 25, um grupo ficou frente a frente com civis armados que se dispunham a proteger prédios públicos. Um deles atirou, matando dois e ferindo um. Foi identificado como Kyle Rittenhouse, 17 anos, morador de Antioch, a meia hora de distância, mas já no vizinho estado de Illinois. O jovem, simpatizante do movimento Blue Lives Matter, que defende os policiais, está preso enquanto o pedido de remoção para Kenosha é processado.

Os disparos contra Blake desencadearam mobilizações populares em Atlanta, Los Angeles, Chicago e Nova York. Em Portland, no Oregon, onde há semanas são registrados confrontos, ativistas incendiaram um sindicato policial. Em atitude inédita, o time de basquete Milwakee Bucks boicotou um jogo marcado contra o Orlando Magic, em protesto contra a violência policial, provocando histórico adiamento em todo o calendário das finais da NBA. A família de Blake pediu calma. “Por favor, não queimem prédios nem façam baderna, não derrubem casas em nome do meu filho”, disse a mãe, Julia Jackson.

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Republican National Convention
PAZ E AMOR - Melania discursa na convenção: tom conciliatório, apesar do figurino militar – (Michael Reynolds/EFE)

A renovada tensão racial ocorreu em plena convenção do Partido Republicano e, provavelmente, interferirá nos rumos da votação de novembro. Pandemia e economia continuam no topo das preocupações, “mas esta será a eleição com maior foco em questões raciais da história”, prevê John Tures, professor de ciências políticas da LaGrange College, na Geórgia. Joe Biden, que escolheu uma filha de jamaicano, Kamala Harris, para vice, ligou para a família de Blake para assegurar que “a justiça deve ser e será feita”, ressaltando ao mesmo tempo que “queimar comunidades não é protesto, é violência desnecessária”. O candidato democrata precisa se equilibrar entre o eleitorado negro e o mais progressista, que já é seu mas tem de sair de casa para votar, e o americano branco médio, que pode até condenar o racismo, mas teme, acima de tudo, os reflexos de uma explosão desenfreada de violência. É a esta parcela — os disputados “moradores do subúrbio”, que em 2016 surpreenderam e votaram nele — que Donald Trump se dirige quando, sem citar o excesso policial, esbravejou no Twitter: “Vou enviar hoje mesmo a Guarda Nacional a Kenosha para restaurar a lei e a ordem”. Como a ele também não interessa alijar eleitores, Trump encarregou a geralmente muda primeira-dama Melania, nascida na Eslovênia, de declarar, em discurso no segundo dia da convenção, que “eu, como vocês, tenho refletido sobre a inquietação racial no nosso país”. Ela prosseguiu, em um tom conciliatório que não cabe na boca do marido: “A dura realidade é que não temos orgulho de partes da nossa história. Recomendo a todos que foquem no futuro, sem deixar de aprender com o passado”. Envergando um conjunto verde-oliva Alexander McQueen em estilo militar, o que se viu no pódio montado no Jardim das Rosas foi Melaninha paz e amor, apesar do figurino, dando seu recado. O problema: os Estados Unidos não vivem um momento pacífico.

Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702

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