Tropeço nas urnas põe agenda ultraliberal de Milei em xeque
Em meio à crise política e econômica, presidente argentino vê recuperação do peronismo

Há poucas semanas, os ventos que sopravam no Rio da Prata pareciam impulsionar a barca do Liberdade Avança, o partido do presidente da Argentina, Javier Milei. O autodenominado “anarcocapitalista” navegava tranquilo pelas águas da eleição legislativa de meio de mandato, apoiado por partidos de centro, e com as pesquisas indicando 40% das intenções de voto — 10 pontos à frente da oposição peronista. O controle da inflação e a previsão de crescimento do PIB de 5,5% para 2025 pareciam indicar um cenário sem drama. De uma hora para outra, contudo, um furacão em forma de escândalo mudou a história. Karina, a onipresente irmã do mandatário e titular da secretaria-geral de governo, foi instalada no centro de um esquema de corrupção envolvendo a compra de remédios. A vitória certa deu lugar, então, a uma fragorosa derrota.
Encerrada a votação da província de Buenos Aires, a coalizão peronista Fuerza Patria, comandada pelo governador bonaerense Axel Kicillof, conquistou 47% dos votos, ante apenas 34% da legenda governista. “Tivemos uma derrota clara”, admitiu o presidente, sem rodeios. É um resultado parcial, já que a maior unidade da federação argentina, que congrega 40% do eleitorado, antecipou o pleito. Milei tem a chance de recuperar terreno nas eleições das outras 22 províncias, previstas para outubro, mas a reversão do quadro é bastante difícil. O revés em Buenos Aires fez estrago. A oposição conquistou 21 das 46 cadeiras em disputa na Câmara e 13 dos 23 assentos do Senado, o que garante votos suficientes para pôr em marcha a derrubada da “terapia de choque” econômico implementada pelo mandatário.

Ao que tudo indica, vem mais chumbo pela frente. A oposição tem explorado ao máximo o Karinagate, como ficou conhecido o caso envolvendo a poderosa irmã, apelidada nos bastidores da Casa Rosada de El Jefe. Áudios vazados mostram Diego Spagnuolo, ex-chefe da Agência Nacional de Deficiência, denunciando um suposto esquema de propinas em contratos de medicamentos que destinaria entre 3% e 4% dos valores à manda-chuva portenha. O presidente demitiu o auxiliar e negou categoricamente as acusações. Na Justiça, chegou a obter uma liminar proibindo a divulgação de novos áudios, mas não conseguiu deter o fracasso na votação. Reação maior só veio depois do fiasco, com a recriação do Ministério do Interior, na tentativa de recuperar a popularidade azeitando o diálogo com governadores. À frente da pasta, colocou Lisandro Catalán, um ex-peronista.
Outra frente de dor de cabeça para Milei vem justamente da economia. A contração de 1,8% do PIB em seu primeiro ano foi vista como um remédio amargo para curar a gastança desenfreada e ineficaz do peronismo, mas a almejada recuperação tem levado mais tempo do que o esperado. A liberação da venda de dólares, uma salutar providência, ajudou a aquecer a atividade, mas causou perda de poder aquisitivo de uma aguerrida população. Toda quarta-feira, aposentados realizam protestos diante da sede do governo. Não raramente, a grita termina em pancadaria. Para piorar, o desemprego subiu para 7,9%, a maior taxa em cinco anos, e ao menos 15 000 empresas foram à falência. “O resultado da recente rodada da eleição expõe a crescente tensão social nos distritos mais importantes da Argentina”, diz Juan Cruz Díaz, diretor do Cefeidas Group, consultoria com sede em Buenos Aires.

Enquanto a Casa Rosada se reúne para estudar como salvar a agenda de reformas, Kicillof emerge fortalecido. Ex-ministro da Economia de Cristina Kirchner, o governador é o herdeiro natural do peronismo, já que sua mentora foi condenada por corrupção e encontra-se em prisão domiciliar, inelegível. À frente da maior e mais rica província do país, o governador conquistou apoio ao combinar pragmatismo econômico com apelo social, oferecendo uma alternativa ao Estado mínimo de Milei. Até agora, contudo, se aproveita mais dos deslizes do incumbente do que da apresentação de propostas para fazer a Argentina recuperar os tempos de pujança, esquecidos em um passado distante. Em um mês o país voltará às urnas. Milei, que andava todo pomposo e arrogante, levou um primeiro susto. A ver se consegue se recuperar.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961