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Um júri na era do viral

Transmitido ao vivo por cinco dias e cinquenta horas, o julgamento do brutal assassinato do menino Bernardo Boldrini foi acompanhado como um reality show

Por João Batista Jr., de Três Passos (RS)
Atualizado em 4 jun 2024, 15h33 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00
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  • Se os dezessete minutos da transmissão ao vivo pelo Facebook da matança na Nova Zelândia representam um dos mais perturbadores registros de um ataque em massa na era do horror viral, e se a construção do massacre de Suzano foi engendrada na porção escura da web, assistiu-se na semana passada a outra modalidade de uso das redes sociais nos casos de violência — a pressão que elas exercem nos julgamentos fechados em salas do tribunal do júri. Foi o que ocorreu em Três Passos, cidade de 23 000 habitantes a 470 quilômetros de Porto Alegre, palco do julgamento da execução de Bernardo Boldrini, menino de 11 anos envenenado por doses maciças de um sedativo em abril de 2014. Todos os réus foram condenados: Lean­dro Boldrini, pai da vítima (33 anos e oito meses), Graciele Ugulini, madrasta (34 anos e sete meses), Edelvânia Wirganovicz, amiga de Graciele (22 anos e dez meses), e Evandro Wirganovicz, irmão de Edelvânia (nove anos e seis meses).

    Jazigo Bernardo Boldrini
    A REALIDADE CRUA - Bernardo foi enterrado no mesmo jazigo da mãe, Odilaine, na cidade de Santa Maria (Juliano Mendes/.)

    Três câmeras profissionais transmitiram cada detalhe dos cinco dias e cinquenta horas de sessões. Dentro do fórum havia apenas setenta pessoas, entre advogados, jornalistas e populares que chegaram a fazer fila para entrar no recinto. Do lado de fora, eram 8,1 milhões de pessoas — ou, para ser mais preciso, foram 8,1 milhões de visualizações do júri por meio da página do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Restaurantes e cafés da região noroeste do estado exibiam os debates em televisores.

    Pode-se dizer que, no avesso do comedimento sempre imposto pela Justiça, as redes sociais participaram do julgamento. Houve, agora, 300% a mais de busca sobre Bernardo no Google do que durante a semana da descoberta do crime, em 2014. O Twitter virou uma arena de comentários: “Estou pasma que a mulher que cavou a cova de Bernardo o trata pelo termo de ‘guri’ ”, “Pai mais falso que nota de 3 reais” e “Um advogado citando a Bíblia para defender uma assassina”. Os protestos depois do veredicto foram convocados por Whats­App. Nas postagens, os personagens agruparam-se em núcleos: os mocinhos (promotores), os vilões (advogados dos réus e os próprios réus) e a grande protagonista (a juíza Sucilene Engler). “Minha mulher me enviou mensagens a meu respeito”, disse Luiz Geraldo Gomes dos Santos, defensor de Evandro Wirganovicz. “Os mais furiosos afirmaram que advogado de assassino também é assassino.”

    Leandro Boldrini
    CINISMO - Algoz do filho Bernardo, Leandro Boldrini, de camiseta com atividade escolar da filha: crítica nas redes (Mauro Schaffer/Correio do Povo/.)

    O advogado de Edelvânia Wirganovicz, Jean Severo, identificou a presença de haters, aqueles sujeitos que esparramam ódio em redes sociais. Disse Severo ao júri: “Não julguem pelo clamor de quem destila raiva no Facebook. Essas mesmas pessoas, quando um filho é pego com um baseadinho, se ajoelham no meu escritório pedindo ajuda”. Com cabelo grisalho e óculos de armação escura, Severo tem gestos expansivos. Seu sotaque dá ao “u” um som arrastado de “l” (“allldiên­cia”). São características afeitas à espetacularização, ao fenômeno viral que se espraia pela internet, alimentando memes, servindo de escada para piadas — e Severo, nesse aspecto, não brinca em serviço. Nas ocasiões em que esmurrou a mesa para mostrar indignação, encarou em seguida a plateia para conferir as reações.

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    Vanderlei Pompeu de Mattos, o Pompeuzinho, causídico de Graciele, foi um espetáculo à parte. Do alto de seu alegado 1,68 metro (parece ter 10 centímetros a menos de perto), ele fala separando as sílabas (“dis-pa-ri-da-de de á-li-bis”), abrindo a boca mais do que o normal para acomodar o aparelho instalado nos dentes muito recentemente. O “nanico”, como ele se refere a si mesmo, falou, ao vivo e em cores, da exposição trazida pelo júri: “Quero agradecer às mensagens que tenho recebido pela internet, até de gente do Piauí. Um abraço a todos”. O saldo pós-julgamento para Pompeuzinho foi muito bom: ele recebeu 400 pedidos de amizade em sua conta no Facebook. Aceitou todos.

    Julgamento do caso Bernardo
    WHATSAPP – Passeata na cidade gaúcha de Três Passos, marcada pelo aplicativo logo depois da sentença: mobilização (Isadora Neumann/Agência RBS/Folhapress)

    Mas, afinal de contas, é positiva a invasão das redes? A juíza Sucilene Engler, de 36 anos, acha que sim, e vê na possibilidade de transmissão sem filtro um atalho estratégico. “Ao mostrar tudo, a transparência evitou aglomerações na porta do fórum, o que poderia atrapalhar uma avaliação isenta dos jurados”, diz ela. Os sete jurados — cinco homens e duas mulheres, todos acima dos 40 anos e brancos — não foram exibidos pelas câmeras nem autorizados a ser fotografados pela imprensa. A juíza, ela própria, não tem perfil em nenhuma rede social — só ficou sabendo que estava sendo chamada de “gata” no Facebook pelo noivo, levemente enciumado, com quem se casará em um mês. Para o promotor Bruno Bonamente, abrir o júri para o país todo é positivo: “As pessoas viram as provas e as análises técnicas, entenderam como se deu a investigação e acompanharam a exposição das testemunhas”. Um dos momentos mais difíceis, que levou parte dos presentes às lágrimas, foi quando a promotoria mostrou um vídeo de treze minutos em que Bernardo era torturado psicologicamente pelo pai e pela madrasta. Enquanto o menino gritava por “socorro”, o pai dizia que a mãe dele se suicidara em 2010 porque ele era “chato”. Pressionado e chorando, Bernardo falava que queria morrer — ao que era estimulado pela madrasta: “Você não tem coragem? Se mata. Prefiro apodrecer na cadeia a ter que viver na mesma casa que você”.

    A juíza interrompeu a transmissão quando a promotoria mostrou imagens do cadáver de Bernardo — mesmo para os padrões da internet, onde vale tudo, a cena seria demasiadamente agressiva. Muitas pessoas choraram. Além do envenenamento do garoto, os criminosos despejaram 2 litros de soda cáustica sobre seu corpo nu, para em seguida jogá-lo na cova. As fotografias eram terríveis. Antes do assassinato, o menino sofria tortura e desamor. Ele pediu ajuda no mesmo fórum onde ocorreu o julgamento. Bernardo queria ser adotado por outra família. Na casa de quatro quartos e piscina, o garoto vivia feito um miserável: não podia ver TV, suas roupas eram velhas e sujas e ele não tinha acesso a comida — “Me dá um bife?”, pediu em certa ocasião a uma vizinha. Bernardo foi enterrado ao lado da mãe, em Santa Maria. Sua meia-irmã, Maria Valentina, com quem era impedido de brincar, mora com a tia materna, Simone Uguline, em Santo Augusto. A garota, de 6 anos, nunca visitou a mãe nem o pai na cadeia.

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    O primeiro júri popular parcialmente transmitido pela internet no Brasil ocorreu em 2013, no caso do assassinato da advogada Mércia Nakashima, encontrada presa no interior de um carro jogado em um lago, em Guarulhos. O assassino: Mizael Bispo, seu noivo e ex-policial. Não havia naquele tempo — e seis anos são uma eternidade nas redes sociais — o impacto de hoje. “A transmissão on-line adiciona audiência e plateia, cria um clima de Big Brother, em que advogados de defesa são atacados em tuítes, em ondas crescentes de espanto e provocação”, diz Davi Tangerino, professor de direito penal da Fundação Getulio Vargas. “Não por acaso, após o julgamento do mensalão, ministros do STF passaram a fazer análises mais longas por saberem estar ao vivo no canal TV Justiça.”

    É show que parece ter uma gênese: o caso O.J. Simpsom, conhecido como “o julgamento do século”, marco da superexposição de um tribunal penal. As audiências foram transmitidas pela TV entre setembro de 1994 e outubro de 1995, quando o ex-jogador de futebol americano foi absolvido pelo assassinato da mulher, Nicole Brown, e do jovem Ronald Goldman. O juiz do caso virou símbolo do que não deve ser feito: com o ego inflado, concedeu inúmeras entrevistas ao longo do processo. Mas, na década de 90, a televisão ainda era a rainha da imagem. Agora, as redes sociais, com suas transmissões ao vivo, estão no trono.

    Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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