Um tribunal improvisado dentro de um galpão de 3 000 metros quadrados, onde funcionava uma central de telemarketing, dá o tom da grandiosidade do julgamento que acaba de se iniciar na cidadezinha de Lamezia Terme, na Calábria, bem na ponta da bota italiana. Com previsão de durar até dois anos, o maior julgamento da Itália em três décadas tem 325 réus e 900 testemunhas, muitos deles conectados via aplicativos de videoconferência a 150 monitores. Também há espaço para acomodar um público de mais de 1 000 pessoas, já que o objetivo é fazer do processo um exemplo de justiça na região dominada pela ‘Ndrangheta, a máfia calabresa. Irmã menos conhecida — mas não menos poderosa — da Cosa Nostra siciliana e da Camorra napolitana, a organização é atualmente a maior importadora de drogas para a Europa e uma das “empresas” mais ricas do continente.
Fileiras de mesas foram montadas, com cadeiras a mais de 1 metro de distância, para acomodar advogados, promotores e jornalistas. Uma leva de 91 réus começará a ser julgada no fim do mês, em outro tribunal, e um terceiro grupo enfrentará a Justiça em fevereiro. Entre os acusados — tantos que a leitura dos nomes durou três horas —, 58 já concordaram em quebrar o código de silêncio que prevalece no crime organizado italiano e delatar superiores, um rompimento de tradição que aumenta o interesse pelo julgamento. A ampla e variada lista de delitos, que remontam à década de 90, inclui assassinatos, sequestros, extorsão, agiotagem, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, corrupção e formação de quadrilha. Os procuradores ainda pretendem comprovar as relações espúrias da máfia da Calábria com policiais, servidores públicos e políticos situados no alto escalão dos governos regional e nacional, como o já condenado deputado Giancarlo Pittelli, do Força Itália, partido do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi.
Expandindo seus negócios para além do submundo do crime, a ‘Ndrangheta está hoje firmemente instalada no ambiente corporativo da região, onde lava lucros ilegais por meio de empresas de fachada e laranjas. Seu campo de ação abarca todos os setores da sociedade, de hospitais a tribunais, passando pela gestão de cemitérios e pelo controle do importante porto de Gioia Tauro, na Costa Oeste da Calábria. “Ela deixou de ser uma quadrilha de pequenos bandidos para se tornar uma verdadeira holding do crime. Funciona como uma empresa multinacional das mais poderosas”, diz o promotor-chefe, Nicola Gratteri, que há trinta anos vive sob escolta policial e chegou ao tribunal cercado de guarda-costas.
A máfia calabresa é parte integrante da sociedade, confirma o criminólogo Federico Varese, da Universidade de Oxford. “Sua presença está em todas as atividades lícitas e ilícitas. Eles são a autoridade na região“, ressalta. A ‘Ndrangheta também mantém ligações com bandos criminosos nos Estados Unidos e na América do Sul. Um estudo de 2013 do instituto italiano Demoskopika calcula que o grupo fatura mais do que o Deutsche Bank e o McDonald’s juntos, com volume de negócios anual superior a 50 bilhões de euros. No ramo imobiliário, que domina, a participação em negócios de luxo, como hotéis e concessionárias, convive com a execução pura e simples de quem não cede a suas pressões: recentemente a polícia confirmou que uma dona de terras sumida desde 2016, cujo corpo nunca apareceu, foi assassinada e teve seus restos mortais jogados aos porcos.
Entre os réus do julgamento que se inicia agora está Luigi Mancuso, de 66 anos, o chefão da ‘Ndrangheta — expressão derivada de uma palavra grega que significa “sociedade de homens de honra”. Caçula entre onze irmãos, ele era uma espécie de líder de seita, obedecido à risca por seus seguidores a partir de seu quartel-general em Vibo Valentia. Diferentemente das outras máfias, que costumam recrutar integrantes com base na eficiência, as relações na ‘Ndrangheta são tecidas por laços de sangue, o que dificulta ainda mais a obtenção, pelas autoridades, de testemunhas e delatores. O grupo engloba cerca de 150 famílias ou clãs, que por sua vez têm 6 000 membros e afiliados, sem contar parceiros e aliados no exterior. Em prisões coordenadas na Itália, Bulgária, Alemanha e Suíça em 2019, em uma operação que mobilizou 3 000 policiais, foram encontrados detalhes do ritual secreto de ingressão na máfia da Calábria, com referências esotéricas, espadas e cavalos brancos. Também se observou que as casas dos chefões eram dotadas de sofisticados túneis e esconderijos.
O julgamento em massa na Calábria é o mais populoso desde o “maxiprocesso” da Cosa Nostra iniciado em 1986 em Palermo, que durou seis anos e levou à condenação de mais de 300 acusados, incluindo dezenove sentenças de prisão perpétua — um golpe do qual aquele braço do crime organizado nunca se recuperou. Ao longo do processo, conduzido em uma prisão transformada em bunker, vários juízes ligados ao caso foram assassinados, inclusive os dois principais, Giovane Falcone e Paolo Borsellino. O enfraquecimento da máfia siciliana foi justamente um dos fatores que impulsionaram o “progresso” da contrapartida calabresa. A expectativa é que o tribunal cinematográfico montado agora no centro de atuação da ‘Ndrangheta pegue carona na atmosfera geral de evidente menor tolerância com o crime organizado e incentive a população “atormentada e humilhada” pelos mafiosos a se libertar de seu jugo. “Vamos tornar mais habitável uma região martirizada há mais de um século”, convocou o promotor Gratteri. Seria uma mudança e tanto.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722