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Van Gogh é símbolo da cultura pop, diz organizador de livro sobre artista

A VEJA, Felipe Martinez fala sobre obras expostas no Brasil e o encantamento global em torno do pintor holandês

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 8 Maio 2024, 12h08 - Publicado em 25 mar 2024, 12h45

Em sua breve vida como pintor, Vincent van Gogh (1853-1890) trocou centenas de cartas com o irmão, Theo, nas quais compartilhou suas conquistas, angústias, felicidades e desesperanças. Juntos, os escritos formam uma espécie de autobiografia misturada com um romance epistolar, criando uma janela perfeita para a mente de um dos maiores artistas da história.

Com traduções diretamente dos originais em holandês e francês, uma nova seleção de Cartas a Theo, organizada por Jorge Coli e Felipe Martinez para a Editora 34, mostra um Van Gogh menos mitológico e romantizado, com problemas comuns, como a falta de tinta para pintar, e decisões conscientes em torno de sua própria carreira profissional.

A VEJA, Felipe Martinez, doutor em história da arte pela Unicamp, com pós-doutorado pelo Museu de Arte Contemporânea da USP e pela Universidade de Amsterdã, fala sobre o encantamento em torno do artista holandês, o mito de um pintor torturado mentalmente e as obras expostas no Brasil.

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Cartas a Theo, da Editora 34 (Editora 34/Divulgação)

Há uma espécie de explosão recente de conteúdos em torno de Van Gogh: filmes, biografias e até exposições interativas que rodaram o mundo. Por que ele encanta tanto as pessoas?

Tem muito a ver com a própria biografia. Uma coisa muito importante na história do Van Gogh é o preço que a biografia dele tem não só na nossa construção da obra dele, mas o preço que essa biografia vai ter na própria ideia de artista que vai depois ser muito importante na modernidade. Vai ser importante no final do século 19 e depois, posteriormente, na primeira metade do século 20. 

Essa biografia, que tem momentos cinematográficos quase, antes de o cinema existir, é uma biografia que vai envolver derrotas, vai envolver amores fracassados, problemas do que a gente chama hoje de saúde mental. Tudo isso fomenta uma ideia de alguém que não só produziu uma quantidade enorme de obras, mas que depois da morte deu a volta por cima. Ele é um artista que vai ser reconhecido só depois da morte.

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A maneira como a gente se relaciona com as obras dele necessariamente também passa pela compreensão que a gente tem da biografia dele. Para isso as cartas são muito importantes. São um acesso que temos à biografia dele, feito por ele mesmo. 

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Há uma visão deturpada e romantizada desse mito do artista louco e torturado mentalmente. Como fugir dessa visão? A revisão das cartas, com uma pesquisa mais crítica e profunda, é um caminho?

Esse é um dos objetivos que a gente teve com a publicação. A primeira publicação, em holandês e alemão, é por volta de 1913 ou 1914, um pouquinho antes da Primeira Guerra. Quando a gente fez essa nova seleção de cartas, foi justamente para tirar um pouco desse lado exageradamente mitológico, ou mitificado, do artista. É uma seleção que permite que a vida dele seja vista de uma maneira um pouquinho menos romantizada e exagerada. As cartas necessariamente permitem isso. As cartas são uma maneira de olhar para esse artista no cotidiano dele, vendo coisas que não são tão necessariamente importantes etc. 

O objetivo dessa publicação é, de alguma maneira, enfraquecer esse mito e ter uma compreensão mais próxima daquilo que, de fato, foi a vida dele. 

Apesar de chamado Cartas a Theo, o livro tem um protagonismo grande de Johanna van Gogh-Bonger, cunhada do pintor. Dentro da sua pesquisa, qual o papel dela para essa ascensão do Van Gogh como um artista global?

Ela é a grande responsável. Recentemente brinquei que eu, na verdade, estudo cultura pop, porque Van Gogh é um personagem da cultura pop — e isso acontece sobretudo no século 20, que tem uma grande biografia sobre ele, depois um filme nos anos 50, com o Kirk Douglas. 

Há todo um aparato que foi se construindo e reforça essa visão. Sem os esforços que a Johanna fez no começo do século 20, principalmente, para promover as obras, também da coleção dela, porque ela ficou com as obras depois que o Theo morreu. Ela levou isso para a Holanda e passou a contatar diretores de museus, galeristas comerciais de artes, que poderiam ajudar nessa promoção na obra do Van Gogh. Ela foi a primeira a publicar as cartas, teve um papel ativo de promotora das obras.

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É claro que o personagem mais importante do próprio mito é o próprio artista, mas ele não dá para ser explicado sem o Theo, que proporcionou que ele pudesse pintar, e a Johanna, no trabalho que ela fez post-mortem. Os três são fundamentais para a criação desse mito do Van Gogh póstumo. 

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Nessa questão do mercado de arte, o Van Gogh tinha também a intenção de incentivar uma arte mais popular, como uma série de gravuras com preços mais baixos. Ele se incomodaria com os valores exorbitantes de hoje em dia e de ser colocado nesse panteão de artistas gigantescos?

É uma boa pergunta. Tem uma carta em que ele está discutindo os valores dos ídolos dele na época, ainda no período holandês. Os grandes ídolos dele na época eram Jean-François Millet e Jean-Baptiste Camille Corot, artistas ligados a um movimento que é chamado Escola de Barbizon, que são artistas paisagistas e que, de alguma maneira, preparam o caminho; não é que necessariamente isso iria acontecer, mas começam a praticar um tipo de obra, sobretudo a pintura de paisagens, que vai ser importante para artistas posteriores, como os impressionistas. 

Quando ele está falando sobre os preços desses artistas, tem uma frase que eu gosto muito, que ele diz que, para ele, o valor de mercado desses artistas pode variar, mas o valor artístico é tão fixo quanto o próprio sol.

E, na verdade, não era bem assim, né? Porque o próprio valor que ele atribuía aos artistas também estava influenciado pelo valor do mercado. Mas é interessante porque, embora ele tenha, obviamente, tido esperanças de que seria reconhecido, que venderia as obras, é claro que ele não poderia antecipar que as obras dele seriam, digamos, representantes de uma explosão de preço, sobretudo no final do século 20, e que em qualquer leilão que a obra dele aparecesse ela será vendida por milhões. Dependendo da obra, alguns milhões a menos, alguns milhões a mais. Mas, sem dúvida, vai ser um valor exorbitante.

É difícil a gente fazer esse tipo de exercício contrafactual, mas eu arrisco aqui com você que dificilmente o Van Gogh poderia ter pensado que ele chegaria a esse patamar de celebridade, até porque não daria para antecipar o que o mundo se tornaria. 

Ele tem esses momentos muito dramáticos, essas histórias de redenção, o que é mais triste e bonito ao mesmo tempo. O cara sofreu tudo aquilo e depois vai virar um dos maiores pintores da história da arte no Ocidente, lado a lado com os grandes nomes que ele já conhecia da época — vai ser um nome incontornável dessa história. 

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É uma ruptura com esses ideais mais populares? 

Sobretudo no período holandês, ele gostava de andar com o povo que não tinha mais nada de esperança na vida: os velhos doentes nos asilos, as prostitutas, os desassistidos. Ele gostava de estar com aquilo que a sociedade rejeita, basicamente. Ele mesmo se considerava uma pessoa dessa classe, digamos assim, e se sentia muito bem entrando nesse meio. Eu não sei se ele se sentiria tão confortável nesses meios em que a obra dele entrou. 

Temos algumas obras do Van Gogh aqui no Brasil. Em um contexto mais amplo, o que isso representa? Tanto para esse alcance da globalização, quanto para a cultura brasileira? 

Van Gogh cita o Brasil duas vezes nas cartas, uma delas está na nossa seleção. É curioso, porque o Masp é o museu que tem os quadros, quatro incontestavelmente pintados pelo Van Gogh e uma natureza-morta que, no passado, já foi atribuída a ele e hoje é atribuída a um contemporâneo. 

Esses quadros chegaram no Brasil no meio do século 20, quando o projeto do Masp estava sendo montado. É muito interessante a gente notar que um deles, O Escolar, que eu acho que é o mais famoso, aquele retrato que é o filho do carteiro,  chegou ao Brasil, pelo estado da Bahia, na cidade de Salvador, e foi recebido com uma festa popular. O quadro do Van Gogh junto com o quadro do Renoir, também; esses quadros foram recebidos com uma festa popular em Salvador, que contou com crianças. O quadro representa um menino francês com uniforme escolar, digamos assim, e contou com crianças locais vestidas com uniforme escolar.

Essa festa de recepção teve shows do Pixinguinha, do Dorival Caymmi e do Luiz Gonzaga. Estamos falando dos anos 50. 

O Van Gogh gostava dessa coisa da arte próxima do povo, da população. Eu tenho certeza que ele jamais poderia imaginar que as obras dele seriam recebidas no Brasil com uma música extraordinária, o melhor que o Brasil produziu em música no século 20. É uma coisa incrível. 

Quando a gente sabe dessa história, da festa, muda também nossa percepção em relação à obra. Ela tem uma história que passa por museus em Berlim, em Genebra e chega ao Brasil num projeto de modernização da cultura e da sociedade brasileiras. Isso é muito interessante.

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