Durante cinco longos e tenebrosos anos, de 1996 a 2001, Talibã virou sinônimo de fanatismo religioso e tirania, e o Afeganistão, país sob seu domínio, se tornou palco de seguidos e horrendos atos de obscurantismo e repressão. Foi, pois, com indignada incredulidade que o mundo deparou com a imagem de comandantes armados da milícia radical sentados em volta da mesa do gabinete da Presidência em Cabul.
Era a confirmação de que os mulás voltaram a dar as ordens. Sua primeira providência foi anunciar aos quatro ventos que os barbudos de hoje não são como os de antigamente, prometendo anistia a quem colaborou com o governo anterior e acesso das mulheres à educação e ao trabalho. Tendo cravados na mente as execuções sumárias, os apedrejamentos, o lazer restrito e, acima de tudo, as burcas com que qualquer pessoa do sexo feminino acima de 10 anos tinha de se cobrir dos pés à cabeça para sair à rua, a população se recolheu amedrontada — e coberta de razão.
Carta ao Leitor: Avanço dos radicais representa um ataque à natureza do islamismo
Para os afegãos e para o resto do mundo, a única coisa certa neste momento é que, exatos vinte anos depois de as tropas americanas terem invadido o país e enxotado os radicais do poder, a longa, custosa e impopular presença dos Estados Unidos no Afeganistão se encerra do mesmo jeito que começou, logo após os atentados do 11 de setembro: com o Talibã no comando. No dia seguinte ao da tomada de Cabul, o temor do retorno à barbárie cotidiana esvaziou as ruas. Fechadas em casa, trabalhadoras, alunas e professoras usavam as redes sociais para se despedir, antecipando outra era toldada pelo atraso que germina quando o despotismo encontra a religião, emperrando o progresso que vigora em ambiente de liberdade. A título de exemplo: no fim da dominação talibã, havia quase 1 milhão de estudantes no Afeganistão — todos homens. Hoje são 39% do sexo feminino, pelo menos até agora. Cautelosos, comerciantes trataram de pintar ou arrancar cartazes de propaganda que exibiam mulheres de rosto descoberto, um alvo preferencial da fúria dos extremistas. As apresentadoras sumiram das emissoras de TV. O noticiário tomou conta da programação, com risco de se eternizar nela — no passado, os religiosos proibiram música, cinema e entretenimento em geral, expressões malvistas da demonizada cultura ocidental.
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O único ponto da cidade com intenso movimento era o aeroporto, sob controle de 5 000 soldados americanos, onde milhares de afegãos desesperados lotavam pistas de decolagem e se penduravam em escadas, tentando entrar nos aviões militares reservados para a retirada de estrangeiros. Na terça-feira 17, abriu-se uma brecha na rampa de acesso de um Boeing de carga preparado para levar 100 passageiros ao Catar e ele acabou decolando com mais de 600 pessoas amontoadas. Famílias inteiras tomaram a pé o caminho das fronteiras, preparando-se para engrossar os 3,5 milhões de afegãos que constituem o segundo maior contingente de refugiados do mundo. Boa parte da população em fuga trabalhou para o governo ou para os Estados Unidos durante os anos de ocupação e se apavora com os requintes de crueldade com que “traidores” eram punidos nas mãos de algozes movidos pelo fanatismo.
Havia meses que o Talibã vinha ocupando províncias inteiras, muitas vezes sem trocar um tiro, com o evidente conluio das autoridades e das forças de segurança, mas sem entrar nas capitais. A Casa Branca, por sua vez, depois de alguns adiamentos, começou em maio a pôr em prática o acordo assinado em 2020 ainda pelo governo Donald Trump — negociado diretamente com o Talibã, o que já dava uma amostra do que estava por vir —, em que o grupo extremista se comprometia a combinar uma divisão de poder com o governo central, em troca do recuo americano. O presidente Joe Biden previa manter uma presença discreta no Afeganistão até setembro. De repente, em menos de dez dias, o cronograma foi por água abaixo: as capitais regionais foram caindo perante o Talibã, uma a uma, até chegar a vez de Cabul — de onde o presidente Ashraf Ghani, com óbvia concordância prévia dos sucessores, saiu de fininho rumo aos Emirados Árabes Unidos e, segundo denúncias, carregando tantas malas de dinheiro que não couberam todas no jatinho. “Fui para evitar um banho de sangue”, justificaria ele depois.
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O porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, deu uma entrevista coletiva em tom conciliador, afirmando que “as animosidades acabaram” e prometendo “um governo forte, islâmico e inclusivo”. Em uma imagem inédita, um representante do grupo foi entrevistado na TV por uma jornalista de rosto descoberto. Ninguém mencionou, claro, que Dawa Khan Meenapal, porta-voz do governo Ghani, tinha sido morto pelos radicais dias antes. Os primeiros grandes protestos contra a volta dos radicais, em Jalalabad, Cabul e outros centros, foram reprimidos com tiros e várias pessoas morreram. Uma jornalista da CNN, reportando da capital, ouviu ameaças veladas de grupos de rapazes na rua. Há notícias de que, em cidades ocupadas há mais tempo, jovens estão sendo obrigadas a se casar com combatentes e as mulheres solteiras não podem mais circular sem que um familiar — homem, claro — as acompanhe.
O retrocesso civilizatório ganha contornos mais preocupantes em um país onde quase metade da população vive abaixo da linha da pobreza e a atividade econômica é precária. “O Talibã não tem capacidade técnica, recursos nem experiência para comandar sem auxílio externo”, ressalta Vanda Felbab-Brown, especialista do Brookings Institution. “O esperado declínio dos direitos civis deve vir acompanhado de uma grave crise econômica.” Impulsionar a economia parece ser a principal motivação para as palavras conciliatórias em tom de promessa no dia seguinte ao da tomada do poder. Acredita-se que o novo líder de fato do Afeganistão, Abdul Gani Baradar, político da velha guarda mas de convicções um tanto mais pragmáticas, esteja empenhado em fazer alianças com adversários dos Estados Unidos, sobretudo a China — que já anunciou o plano de retomar a exploração da segunda maior mina de cobre do mundo, vizinha a Cabul, interrompida em 2008.
O Talibã nasceu nas madraçais, escolas religiosas frequentadas por refugiados afegãos no Paquistão, no fim dos anos 1980, à época da invasão soviética do Afeganistão — outro lodaçal motivado por apoio a um governo comunista em Cabul que sugou vidas e dinheiro até a finada União Soviética revolver ir embora sem nada em troca (veja a linha do tempo). Como todos os grupos que se insurgiram contra a invasão, o Talibã também foi financiado e treinado pela CIA. Diferentemente dos demais, ele pôs em prática um plano de dominação territorial, sob a liderança do sinistro mulá Mohammed Omar e sua visão religiosa ultrarradical. À medida que avançava, o grupo foi impondo o terror na vida cotidiana. A certa altura, chocou o planeta ao explodir estátuas milenares de Buda, um patrimônio histórico de valor inestimável. “Acho impossível reformar o Talibã”, afirma Jessica Berlin, analista política do centro de estudos Europa Nova, de Paris. “Sua ideologia é profundamente arraigada no fundamentalismo.” Execrados em toda parte, inabaláveis na sua cruzada pela “pureza” do Islã, os mulás acabaram atropelados pela ação terrorista de um de seus poucos amigos: a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Após a queda das torres gêmeas do World Trade Center em Nova York, em 11 de setembro de 2001, atentado que matou 3 000 pessoas e disparou ondas de choque até hoje sentidas (veja a reportagem na pág. 50), Bin Laden se refugiou nas montanhas do Paquistão — e os Estados Unidos foram atrás. Em pouco tempo, o Talibã acabou deposto, mas permaneceu ativo, seja em ataques armados a posições do governo, seja explodindo homens-bomba. Morto Bin Laden e removidos os grupos terroristas abrigados no Afeganistão, os Estados Unidos quiseram implantar um governo solidamente aliado no país, de cultura tribal, corrupção endêmica e antipatia por potências estrangeiras — e assim como a URSS e, antes dela, o Reino Unido, fracassaram fragorosamente. “Os americanos cometeram diversas falhas, a começar pela ausência de objetivos claros. Envolveram-se em uma missão de reconstrução nacional que não produziu progresso social nem econômico”, avalia David Dumke, especialista em Oriente Médio da Universidade Central da Flórida.
A guerra mais longa em que o país se engajou, envolvendo quatro presidentes (os republicanos George W. Bush e Donald Trump e os democratas Barack Obama e Joe Biden), consumiu mais de 2 trilhões de dólares, ou 300 milhões por dia, e nela perderam a vida 2 500 militares americanos e 4 000 civis prestadores de serviços, além de 69 000 soldados afegãos, 48 000 civis e 51 000 combatentes extremistas. Coube a Biden encerrar a participação americana no conflito, medida inicialmente apoiada por 70% da população, e recaiu sobre seus ombros o vexame da queda de Cabul — um passeio para o Talibã e um salto no escuro para milhares de afegãos apavorados. “Os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de se aferrar a políticas relacionadas a um mundo que não existe mais”, tentou se justificar o presidente, em discurso à nação.
Por mais atrapalhado que tenha sido o desfecho, Biden fez o que, em algum momento, de forma mais ordeira, tinha mesmo de ser feito. Ele conta agora com o tempo para amenizar a péssima impressão — e deletar a insistente comparação com os últimos e inglórios dias da Guerra do Vietnã e a derrota imposta pelas forças comunistas ao governo de Richard Nixon. As cenas de desespero no aeroporto de Cabul resgataram na memória a fila para embarcar no último helicóptero a decolar do teto da embaixada americana em Saigon (atual Ho Chi Minh), em 1975. Trata-se de uma analogia imprecisa — os Estados Unidos nunca estiveram em guerra com o Talibã, nem este derrotou o Exército mais poderoso do planeta. O que une os dois episódios é a fuga da tirania. “O governo Biden não tinha outra alternativa senão retirar as tropas, mas a falta de planejamento gerou a primeira grande crise do novo presidente”, afirma Sergio Amaral, ex-embaixador em Washington e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Teimosamente resistentes a investidas estrangeiras, os afegãos viram mais uma potência ir embora de mãos abanando. Resta saber como vão se defender do despotismo e do fanatismo religioso dentro de suas próprias fronteiras, um retrocesso assustador em pleno século XXI.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752