“2020 será visto como o 1º ano de uma nova era”, diz CEO global da IBM
Arvind Krishna examina a revolução tecnológica trazida pela pandemia e explica por que nunca mais seremos os mesmos após o avanço da inteligência artificial
O engenheiro elétrico indiano Arvind Krishna assumiu o posto de CEO global da IBM, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, em abril 2020. Não era um período qualquer. Depois de trinta anos atuando em diversas áreas da companhia, ele ficaria incumbido de liderar o desenvolvimento de computadores quânticos, a próxima revolução tecnológica que está prestes a bater à porta da humanidade. Krishna, contudo, deparou com um desafio mais complexo: comandar, em plena pandemia, um gigante com presença em mais de 170 países e quase meio milhão de funcionários. Para sua sorte — e de sua empresa, obviamente —, nunca as pessoas estiveram tão dispostas a desfrutar novas tecnologias. Na entrevista a seguir, Krishna fala sobre as mudanças trazidas de forma compulsória pela grande crise dos últimos dois anos e esmiúça a revolução digital da nova era.
A pandemia levou a inúmeras transformações na sociedade. Na área da tecnologia, o que mudou? Antes da crise, a maior preocupação era se a tecnologia deveria ser usada em escala tão vasta. Depois da pandemia, passamos a discutir a confiabilidade dos novos recursos tecnológicos e o risco de serem utilizados para fins escusos. Quando se fala sobre isso, a legislação e a regulação têm grande importância. Muitos países estão trabalhando nesse sentido, inclusive o Brasil.
A crise sanitária, portanto, alterou a forma como o público enxerga a tecnologia? Em 2020, pela primeira vez em muito tempo, o PIB global caiu sem que houvesse falta de mão de obra. A tecnologia mostrou que é possível manter o trabalho intelectual até nesses momentos. Na história, nunca tivemos uma vacina que foi criada, testada e liberada para uso em nove meses. Houve muita tecnologia computacional usada para o desenvolvimento da vacina.
A tecnologia pode ajudar a evitar a próxima pandemia? Certamente. Tomemos como exemplo a crise de Covid-19. Ao ajudar na criação da vacina, a tecnologia diminuiu os impactos negativos da pandemia. Ainda assim, levou nove meses. Será que conseguiremos reduzir esse tempo? Levar a vacina a outros países de modo mais eficiente? Juntar, monitorar e analisar dados suficientes para prever a próxima pandemia? Talvez possamos encurtar o ciclo da próxima vez, tornando a pandemia menos invasiva.
A demanda por tecnologia continuará a crescer com a volta da normalidade? A população do Sudeste Asiático e da África está aumentando. Com isso, será preciso desenvolver mais serviços, ampliar os sistemas de saúde. Contudo, não há mão de obra suficiente. A única resposta para essa realidade é a tecnologia. Neste momento, com a inflação elevada e as altas taxas de juros no mundo, a tecnologia é ainda mais importante, pois ela impulsiona a economia.
“Na inteligência artificial, os algoritmos aprendem a partir de exemplos que nós fornecemos. A sociedade só será bem replicada dentro dos computadores se tivermos times diversos cuidando deles”
Qual é a relação entre o crescimento econômico de um país e o seu grau de sofisticação tecnológica? Historicamente, a tecnologia sempre acompanhou o crescimento do PIB. Hoje em dia, porém, ela está de 3% a 4% à frente. Quando converso com governantes de vários países, eles estimam que a tecnologia represente de 2% a 3% do PIB. Agora, querem que o número chegue a 6% ou 7%. Ou seja, a tecnologia terá papel mais vital no futuro. Na verdade, está chegando a um ponto de relevância equivalente ao de serviços financeiros. Trata-se de uma grande transformação.
O avanço tecnológico levará a um cenário em que o trabalho do homem se tornará desnecessário? Não. Sei que sou minoria quando digo isso, mas tenho certeza de que estou certo. Se voltarmos ao ano 1900, mais de 50% do mundo trabalhava com agricultura. Atualmente, a taxa é 3%. Os outros 47% não estão parados: eles trabalham em outras indústrias que criamos, como o varejo ou o sistema de saúde. Nós temos necessidades demais para chegar a um mundo onde o homem não precisará mais trabalhar.
Mas algumas funções deverão desaparecer, certo? Neste momento, aeroportos precisam de centenas de milhares de trabalhadores. O mercado de fibras necessita de milhões de pessoas. A saúde também. Há inúmeros exemplos de ramos que demandam seres humanos. Conforme a tecnologia se desenvolve e automatiza os processos produtivos, liberamos as pessoas para realizar outras atividades, provavelmente mais intelectuais. Mas isso, claro, é trabalho também.
Há quem diga que a tecnologia nos afasta uns dos outros. O senhor concorda? É preciso usar a tecnologia da forma correta. Não podemos esquecer que a democracia depende de nossa habilidade para transmitir informação. Nesse sentido, a tecnologia é essencial, pois ela dissemina informações e permite que as pessoas tomem melhores decisões. Precisamos observar o que George Orwell propôs em 1984: a tecnologia será usada para criar uma sociedade moderna ou para mudar o nosso comportamento de forma negativa? É esse o ponto-chave.
Muitas pessoas reclamam que nossos smartphones nos impedem de conversar à mesa. Antes, diziam que os jornais faziam a mesma coisa. Não é só a tecnologia que exerce esse papel. Precisamos ter regras sociais que, de certa forma, regulem a maneira como usamos as tecnologias. Acredito que 90% da tecnologia existe para nos ajudar, e não inibir. Precisamos apenas nos certificar de que ela não está nos enterrando em uma bolha.
Devemos temer o uso da inteligência artificial? Chegará o dia em que poderá ameaçar a humanidade? A inteligência artificial é uma ferramenta que, se desenvolvida e utilizada com responsabilidade, tem o poder de trazer enormes benefícios à humanidade. Seu uso, por si só, deverá liberar 16 trilhões de dólares em benefícios econômicos até 2030. Mas esses benefícios só podem ser realizados se garantirmos que ela seja confiável. As empresas devem ter clareza sobre quem treina seus sistemas de IA, quais dados são usados nesse treinamento e, o mais importante, o que foi incluído nas recomendações de seus algoritmos.
Os sistemas de inteligência artificial são alimentados com informações transmitidas por humanos. Nesse sentido, eles vão replicar nossos erros e deficiências? Quando falamos de inteligência artificial, os algoritmos aprendem a partir de exemplos que nós fornecemos. Isso significa que a sociedade só poderá ser replicada perfeitamente dentro dos computadores se tivermos times diversos cuidando deles. É necessário, portanto, que os criadores de tecnologia sejam diversos. Sem isso, teremos homogeneidade, reproduziremos estereótipos e padrões. É impossível ter uma representação perfeita de todos que existem no planeta, mas é preciso ter representantes de todo grande grupo que existe.
A IBM pretende colocar no mercado, até 2025, um computador quântico. Como seu uso afetaria as nossas vidas? Trata-se da maior mudança de plataforma tecnológica em décadas. Com a computação quântica, poderemos simular o comportamento da matéria até o nível atômico, em vez de fazer suposições. Isso nos permitirá resolver problemas que até mesmo os supercomputadores mais rápidos do mundo não conseguem. Os exemplos incluem a redução do tempo necessário para desenvolver novos medicamentos ou materiais, a criação de modelos climáticos mais precisos e até baterias mais eficientes e potentes.
Como o futuro verá a tecnologia que temos atualmente? O ano de 2020 será visto como um ponto de inflexão para o uso de tecnologia. Digo isso porque, nos últimos séculos, vivemos e trabalhamos de forma parecida com a rotina que era empregada na Revolução Industrial. Um sino tocava e os trabalhadores saíam de casa para trabalhar e só voltavam quando era permitido. Ainda fazemos isso: saímos, pelo menos a maioria de nós, às 9 horas e voltamos às 17 horas. O ano de 2020 foi o primeiro em que não precisamos agir assim, em que priorizamos o nosso próprio tempo.
Qual foi o impacto dessa revolução para o mundo do trabalho? Fomos igualmente produtivos em 99% dos casos. É uma mudança enorme, e que seria impossível sem a tecnologia, principalmente no sentido de comunicação. O ano de 2020 será visto como o primeiro de uma nova era, mais flexível em termos de trabalho, sobretudo quanto à localização e ao tempo que dedicamos às nossas atividades profissionais. Estamos vivendo uma grande experimentação.
“Nos últimos séculos, trabalhamos de forma parecida com a rotina empregada na Revolução Industrial. O ano de 2020 foi o primeiro em que priorizamos o nosso próprio tempo”
O que seria essa exatamente isso? Agora, diferentemente de qualquer outra época da história humana, podemos trabalhar de outro país, em escala global. Praticamente qualquer um pode fazer isso. Os melhores talentos de uma empresa podem estar espalhados pelo mundo. A tecnologia permite que eles colaborem com os negócios tanto quanto quem está presente fisicamente.
A IBM adotou o modelo de home office em seus escritórios no mundo? A atual discussão se concentra demais onde as pessoas trabalham e não quando. Na IBM, projetamos o trabalho com base nos resultados que as equipes estão alcançando, não em suas atividades. Não acreditamos em uma única solução que diga que as pessoas devam estar no escritório em determinados dias e em determinados horários. As equipes podem vir em determinados dias ou uma semana inteira para trabalhar em um projeto específico ou definir horas de colaboração quando todos estão juntos. Uma cultura de confiança permite que as equipes trabalhem de maneira flexível, desde que atinjam seus objetivos.
Qual seria a vantagem desse modelo? A flexibilidade é importante para trazer mais mulheres de volta ao mercado de trabalho, considerando que elas foram desproporcionalmente afetadas pela pandemia. No futuro, acredito que o local de trabalho físico será muito mais sobre colaboração e menos sobre escritórios e mesas onde as pessoas realizem trabalhos rotineiros.
Qual será a próxima revolução tecnológica? Tenho certeza de que será a computação quântica. Essas máquinas poderão responder a perguntas cujas respostas desconhecemos. Como reduziremos o consumo de energia? Como sequestraremos carbono de modo mais eficiente? Como criaremos a próxima vacina? Essas respostas exigem conhecimentos que não concebemos ainda, e não podem ser obtidos com a tecnologia atual. Estamos a poucos anos de distância do ponto em que a computação quântica começará a gerar essas respostas.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806