Chefe da PRF rechaça a pecha de ‘polícia bolsonarista’: ‘O policial é parte da sociedade’
Fernando Oliveira reconhece que o discurso extremista seduz setores da instituição e defende, como remédio, mudanças na formação dos agentes

Fernando Oliveira mal havia tomado posse como diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal quando as sedes dos Três Poderes em Brasília foram invadidas por manifestantes no dia 8 de janeiro de 2023, data que a Procuradoria-Geral da República pontua como o capítulo final da tentativa do ex-presidente Jair Bolsonaro de dar um golpe de Estado no país. Tida por muitos como a mais bolsonarista das forças policiais, àquela altura a PRF estava envolvida em suspeitas de que havia direcionado operações para dificultar que eleitores petistas pudessem votar no segundo turno — uma interferência criminosa no processo eleitoral, de acordo com a ação que tramita no Supremo Tribunal Federal. Encarregado de fiscalizar 70 000 quilômetros de rodovias federais e comandar um efetivo de 13 000 agentes, Oliveira diz que assumiu o posto no pior momento da história da instituição. Alguns setores da PRF, segundo ele, haviam sido cooptados pela pregação radical. Em entrevista a VEJA, o diretor-geral, porém, rechaça a pecha de “polícia bolsonarista”, defende a ampliação dos poderes da corporação, como propõe o governo, e afirma que o discurso raso sobre segurança é um mal a ser combatido.
É uma boa ideia ampliar a área de atuação da Polícia Rodoviária Federal e incluir entre suas atribuições a fiscalização de ferrovias e o combate ao tráfico de drogas em rios? A PEC da Segurança é um enfrentamento de muita coragem do ministro da Justiça. Nitidamente falta à União uma polícia ostensiva que possa estar presente em todos os lugares do país. Hoje a Polícia Federal faz o serviço de polícia judiciária, mas a polícia ostensiva da União, que somos nós, cuida das rodovias. Sei que existem críticas de outras corporações, que veem nessa medida perda de espaço, de poder. Mas é preciso acabar com as vaidades desnecessárias. Segurança pública não se faz com uma instituição sozinha.
O projeto apresentado pelo ministro da Justiça tem sido muito criticado por não apresentar medidas concretas para diminuir os índices de criminalidade. A PEC propõe que existam diretrizes centrais. Hoje não há sequer os mesmos critérios em cada estado para classificar crimes de homicídio, por exemplo. A informação é o que faz a polícia funcionar — inteligência, tecnologia e, sim, presença física, mas as duas primeiras é que definem quão eficiente ela será. No caso da criminalidade urbana, não consigo enxergar uma solução rápida. E as soluções falaciosas, que prometem resolver com rapidez, na verdade agravam o problema. Quando se começa a propagar que a polícia tem que partir para um combate mais violento, terminamos por perder o próprio controle sobre o ente policial. O incremento do crime não pode ser o perdimento das instituições.
“Bolsonaro foi a alternativa para quem acreditava que a polícia é injustiçada, que a sociedade não gosta da polícia e que direitos humanos só servem para bandido”
Algo poderia ter sido diferente no dia 8 de janeiro de 2023 se a PRF já atuasse como polícia ostensiva da União? Teríamos informações de inteligência da Polícia Militar para fazer uma estratégia de atuação diferente, aumentando o policiamento, atuando junto ao GSI e junto à própria PM. Uma ação integrada poderia no mínimo ter dificultado muito a ação daqueles vândalos. Na época, tínhamos — e ainda temos — várias limitações. Eu, por exemplo, era o único dirigente da PRF nomeado naquele momento e meu corpo de diretores sequer existia. Poucos dias antes do 8 de Janeiro, tínhamos a informação de que viria apenas um ônibus a Brasília. Depois esse número foi crescendo — passou para sessenta e em seguida para 100. Não havia justificativa jurídica para impedir a entrada dos ônibus na cidade.
Mas essa movimentação atípica não chamou atenção? Instalei um gabinete de crise para fazer a prevenção de um possível ato que terminou se consumando no dia 8. Os ônibus que estavam vindo para Brasília foram fiscalizados, mas não foram parados porque não havia ilegalidade. Antes da posse do presidente Lula, eu havia supervisionado o planejamento para garantir a estrutura de segurança do evento. Havia receio de alguma manifestação, de algum protesto. Depois dessa primeira etapa, imaginava-se que a ameaça tinha acabado.
Antes do senhor, foi indicado para assumir a direção da PRF um policial que não chegou a tomar posse porque se soube que ele havia comemorado nas redes sociais a prisão do presidente Lula. Seu antecessor, Silvinei Vasques, está no banco dos réus acusado de participar da trama golpista. Por que a PRF se politizou tanto? O campo progressista deixou de discutir segurança pública durante muito tempo. Bolsonaro foi a alternativa para quem acreditava que a polícia é injustiçada, que a sociedade não gosta de polícia e que os direitos humanos só servem para bandido. Mas, ao contrário do que dizem, não somos a polícia mais bolsonarista. Basta observar um detalhe: quem era o ministro da Justiça no governo passado? Um delegado federal. Quem era o diretor-geral da Abin no governo passado? Outro delegado federal.
Quer dizer que a Polícia Federal, em sua avaliação, é a corporação mais bolsonarista? Não é isso. Se fizermos uma enquete em qualquer meio policial, não tenho dúvida que vai ter muita gente ligada à extrema direita que se encantou pelo discurso de que vivemos em guerra. Esse encantamento rodou não só na Polícia Rodoviária Federal ou na Polícia Federal, mas em todas as estruturas de polícia e também dentro do Congresso e na sociedade. O policial é parte da sociedade, ele não surge do nada. Não existe uma polícia mais ou menos bolsonarista.
Como a instituição se sente tendo um colega que atingiu o nível mais alto da hierarquia preso e na iminência de ser condenado? Para mim, se um agente do Estado treinado pelo Estado, fardado e armado pelo Estado faz alguma ação contra a lei, isso é ainda mais reprovável do que o bandido que não teve as possibilidades que esse agente teve. Assumi a PRF no pior momento histórico da instituição. Eu tinha alguns meses de gestão quando, por exemplo, o decano do STF publicou uma postagem no X dizendo que a existência da PRF tinha que ser repensada. Imagina se dissessem para você que a existência da imprensa tinha que ser repensada? É no mínimo constrangedor.
É possível isolar a corporação da política partidária? A maneira de proteger a minha instituição é dar transparência a todas as ações, inclusive liberdade para a investigação de quem quer que seja. A gente não vai passar pano para nada, mas estamos enfrentando resistências. Tenho embates internos até hoje. Um exemplo foi minha ordem de transferir a academia de formação da PRF de Santa Catarina para Brasília. Além da questão administrativa, que é o que me levou a tomar essa decisão, a gente não pode deixar de reconhecer que, sim, o estado de Santa Catarina é um núcleo de atuação muito forte da extrema direita.
A operação de fiscalização que a PRF fez no segundo turno das eleições de 2022 em locais com maior incidência de eleitores do PT é justificável de algum modo? O padrão daquela operação só existiu naquela operação. Historicamente definimos nossa atuação durante todo o calendário eleitoral — quantos policiais estarão disponíveis e o que eles vão fazer, que é garantir o fluxo da rodovia e a segurança de quem transita. Trabalhei com a ministra Cármen Lúcia na última eleição de prefeito e pedi a ela que fosse determinada uma proibição temporária de retenção de veículo se isso não representasse ameaça à segurança. Blitz no dia da eleição não é cabível.
É possível impedir ações truculentas, como a morte daquele homem que foi asfixiado em uma viatura da corporação? Esse discurso radical que existia na PRF pode ter influenciado a conduta daqueles policiais. Policiamento não é a eliminação do inimigo. Temos que proteger o cidadão, inclusive o que comete o crime. Discursos como “bandido bom é bandido morto” fulminam a estrutura civilizada do Estado. É muito ruim acreditar que, se o bandido cresceu na violência, a gente tem que crescer também. Se isso existir como prática, acaba a razão de existir da polícia.
Como conciliar o combate ao crime e o respeito aos direitos humanos? O que dá limite para tornar legal a atuação do policial é justamente o respeito às leis. Sem uma formação adequada sobre direitos humanos na academia, o policial tem a impressão de que pode tudo e acha que há razão em jogar uma pessoa ponte abaixo, por exemplo. A segurança pública como um todo precisava bater o tempo inteiro na mesma tecla: se a polícia atuar fora do limite legal não é mais polícia, é grupo de extermínio, é milícia. A polícia é órgão de proteção da sociedade. Jamais alguém pode olhar um policial e ter medo dele. Se tiver, está errado. Isso tem que ser ensinado na academia.
“Temos que proteger o cidadão, inclusive o que comete o crime. Discursos como ‘bandido bom é bandido morto’ fulminam a estrutura civilizada do Estado”
E está sendo? O cidadão vai perceber essa mudança quando for abordado numa rodovia. Sou contra cursos de polícia em que se treina o policial comendo comida no chão, sofrendo agressões desnecessárias. O que estão tentando fomentar na cabeça dele? Que quando sair dali ele tem que ser rude, grosseiro, porque quem ele admira, que é o instrutor dele, o fez passar por tudo aquilo. Não podemos cair nessa balela de ter paridade de armas entre segurança pública e bandido, porque bandido é bandido, bandido não precisa ter limite nenhum. Repito: muitos dos desvios de policiais nascem desse conceito de “bandido bom é bandido morto”. Policial não pode nem cogitar isso. Nos igualarmos a eles seria o caos, seria guerra civil.
O senhor chegou ao cargo prometendo câmeras corporais em todos os 13 000 policiais rodoviários federais. Por que isso ainda não foi feito? A sociedade fala sempre que a câmera seria uma espécie de corregedoria eletrônica para controlar a ação policial. Eu entendo que não é isso. Ela é um elemento de proteção da atividade policial. É muito melhor para o policial que ele tenha a imagem do que aconteceu para evitar distorções. Muitas vezes as únicas pessoas presentes na ocorrência são o agente e o cidadão. A câmera ajuda a mostrar exatamente o que aconteceu. Infelizmente, o processo de compra está mais atrasado do que eu gostaria.
O senhor, como deu para perceber, é crítico da politização das polícias. Tirar uma foto caracterizado como Fidel Castro não contradiz esse discurso? Aquilo foi uma brincadeira dentro do meu apartamento. Nunca escondi meu viés ideológico como cidadão, mas como diretor-geral jamais permito qualquer coisa desse tipo para não contaminar a instituição. Fora daqui, tenho o direito de me posicionar politicamente e defender o modelo de Estado que melhor se coaduna com o que acredito ser o melhor para o país.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2025, edição nº 2951