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Daniel Craig: ‘James Bond terá de se adaptar às mulheres poderosas’

Em seu quinto e último filme no elegante terno do agente 007, o ator inglês se despede como o protagonista responsável por dar ao herói ares de mortal comum

Por Raquel Carneiro, de Nova York
Atualizado em 4 jun 2024, 14h37 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00
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  • Há quinze anos Daniel Craig é o rosto, o abdômen malhado e a mão que segura o dry martini de James Bond. Sétimo ator a incorporar no cinema o agente secreto criado por Ian Fleming nos anos 50, ele se despede do papel com 007 — Sem Tempo para Morrer. O filme estrearia em 9 de abril, mas foi adiado para novembro em razão da epidemia de coronavírus. Ao receber a reportagem de VEJA em Nova York, Craig logo reverteu a fama de carrancudo monossilábico: falante, ele fez constantes piadas com um afiado humor inglês e mostrou timidez ao rir de ombros contraídos. Ao falar sobre Bond, confirmou não exibir a autoestima elevada do personagem. Também não fugiu da controvérsia sobre o passado do agente, que recentemente provocou a ira das feministas por seu jeito indecoroso de tratar as mulheres. Apesar de dizer que o modo de ser de Bond nunca mudará, o próprio Craig, de 52 anos, é considerado o mais adaptado e moderno 007 da história. Realista, o agente sofre, apaixona-se, chora e sangra como poucos que vieram antes dele. O herói (quase) acessível funciona: seus filmes somam estonteantes 3,2 bilhões de dólares em bilheteria, e novas cifras estão por vir.

    Chegou, realmente, a hora de se despedir de James Bond? Sim, com certeza. Tenho a sensação de dever cumprido. Foram cinco filmes, e meu plano era sair no quarto, 007 contra Spectre (2015), mas os produtores me convenceram de que existia uma história a ser contada, para me despedir do jeito certo. Confesso que, apesar do alívio, também sinto luto pelo fim.

    James Bond é a personificação de uma masculinidade com autoestima inabalável e que se gaba de ter poucos medos. O senhor se reconhece nele? De jeito nenhum. Sou completamente diferente de James Bond, tenho um mar de inseguranças. Por exemplo, não gosto de me ver na tela. Assisto aos meus filmes uma vez só, no lançamento, porque sou obrigado. Eu odeio ouvir minha voz. Quando me vejo nas cenas, questiono: “Por que fiquei parado daquele jeito? Que postura é essa?”. É terrível, sou muito exigente comigo mesmo.

    A insegurança não transparece nos filmes. Como faz para driblá-la? Diversos atores passam por isso. Analisamos cada movimento, cada fala, preocupados com a própria imagem. Esse excesso de autocrítica é um inimigo da profissão. Quando o personagem é James Bond, essa cobrança ganha outra dimensão. Mas aprendi a não levá-lo tão a sério. Como minha esposa (a atriz Rachel Weisz) gosta de dizer, Bond não é um agente secreto, é um supermodelo de passarela. Ele entra em um ambiente, cerra os olhos e faz carão. Estraguei várias cenas, pois gargalhava quando tinha de fazer esse olhar e biquinho sedutores.

    “James Bond, agora, terá de se adaptar a um ambiente com muitas mulheres poderosas. Eu não o julgo pelo passado machista, mas acho mais do que justo que o público o faça”

    Seu James Bond é considerado um dos mais humanos, moldado para um mundo pós-11 de Setembro. Como foi traçar essa personalidade sem alterar quem ele é? Meu objetivo sempre foi mostrar que Bond é um homem repleto de defeitos, pois o vejo assim. O novo filme vai evidenciar isso como poucos: é uma história sobre família, sobre um grande amor. É interessante explorar esse tema porque ele não é um personagem carinhoso, emotivo. Ele é durão. Essa casca foi se abrindo ao longo da jornada. É um herói inabalável a que assistimos há décadas, mas que tem um passado ruim e muitas falhas a ser analisadas.

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    Os filmes do 007 são representantes do período no qual eles se passam, da Guerra Fria até hoje. Agora, o personagem tem sido criticado por posturas anteriores consideradas machistas. Como analisa as cobranças? Quando aceitei esse papel, eu sabia quem era James Bond e sabia também que não se muda um personagem, especialmente um criado nos anos 50. Ele é esse cara, um estereótipo. Suas atitudes pregressas, o jeito como ele tratava as mulheres, fazem parte do que ele é e não acho que alguém deva se desculpar pelo que ele fez ou deixou de fazer no passado. Porém, sim, os filmes representam períodos históricos. James Bond, agora, terá de se adaptar a um ambiente com muitas mulheres poderosas. Eu não o julgo pelo passado machista, mas acho mais do que justo que o público o faça. Por exemplo, nós abolimos o uso do termo bond girl para nossas atrizes, pois é pejorativo. Sem falar que eu levaria um chute merecido de uma delas se a chamasse assim.

    Hollywood tem se mobilizado para ter mais mulheres em papéis de destaque. Esse filme responde à demanda com uma nova agente, interpretada por Lashana Lynch. Seria uma maneira de compensar o passado machista do personagem? Rodar um filme com o intuito de limpar a barra do protagonista não faz sentido. Seria contra o que é a arte e o cinema. Temos excelentes representantes femininas porque são boas atrizes. Essas personagens, como a agente vivida por Lashana, desafiam Bond, fazem com que ele se adapte aos novos tempos e se esforce para continuar no páreo. A presença delas, com certeza, vai levantar questionamentos, controvérsias, discussões e, com sorte, diálogos. E é isso que eu mais espero. Não me chateiam as críticas ao passado de James Bond, pelo contrário: que bom que se fale sobre elas agora.

    O time de roteiristas ganhou o reforço de última hora de Phoebe Waller­-Bridge, a criadora da premiada Fleabag. Ela é a segunda mulher na história da franquia a poder palpitar na trama. A que se deve sua escolha? Antes de qualquer coisa, é importante ressaltar que Phoebe é uma roteirista brilhante. Li em vários sites que ela havia sido contratada para dar um ângulo feminista a James Bond, o que não é verdade. Ela mesma assume que não entrou para isso, até porque não faria sentido mudar um personagem tão conhecido e amado. Phoebe tem paixão por ele e o entende. Fiquei animadíssimo para trabalhar com ela, sou um grande fã. De uma cena para outra, ela provoca as mais variadas emoções, do riso ao choque. Nós a convidamos porque sentimos que precisávamos de um novo fôlego, de uma injeção de energia, e ela era a pessoa certa para isso. Discutimos juntos o que adicionar ao roteiro original, e Phoebe trouxe um novo senso de humor e um tempero, por assim dizer, de ousadia.

    Durante a divulgação do quarto filme, 007 contra Spectre, o senhor chegou a dizer que preferiria “cortar os pulsos” a voltar ao papel. Parece que desenvolveu uma relação de amor e ódio com o agente, é isso? Posso dizer que sim. Não é difícil amar e ao mesmo tempo odiar alguém a quem você se dedica intensamente, em especial um personagem como esse. Sei que tive sorte de poder ser o James Bond por tanto tempo. Não quero parecer ingrato, foi uma experiência inenarrável. Mas sou o tipo de pessoa que se dedica com intensidade: coloquei tudo de mim nesses filmes, e foi gratificante e doloroso. Quando terminamos o 007 contra Spectre, eu estava exausto, me irritei, e pensei: “Quer saber? Já deu, vou embora”. James Bond exige muito de um ator.

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    Que tipo de exigências? Especialmente físicas. Neste filme, quebrei a perna. Fiquei longe de casa por sete meses. No total, entre o roteiro, as filmagens e, agora, o lançamento, foram cinco anos da minha vida dedicados a esse projeto. Por isso, sei que já deu minha hora de entregar o terno do 007. Preciso de um tempo para me recuperar, para descansar. Mas eu olho para toda essa jornada e penso: que cara sortudo eu sou.

    Foram muitas cicatrizes acumuladas, então, nesses quinze anos? Muitas cicatrizes. Parei de contar. Tenho um ortopedista que conhece cada centímetro do meu corpo, ele está rico agora. Eu não sou um esportista, nunca pratiquei esporte de forma profissional. Mas hoje, depois desses filmes, tenho muita empatia e simpatia com essas pessoas. Pois o corpo cobra caro. Mesmo quem joga uma partida de futebol nos fins de semana, em algum ponto vai ter uma contusão, uma dor no joelho, uma cicatriz. O saldo é positivo. Ter cicatrizes é uma prova de que você viveu.

    “Quanto mais velho, mais difícil manter a forma. Nos primeiros filmes, eu levava três meses entre academia e dieta para estar pronto. No último, levei mais de seis meses. É a idade”

    Quando usou o terno do 007 pela primeira vez o senhor tinha 37 anos. Agora, encerra a jornada aos 52, aparentemente com a mesma disposição. A idade pesou de alguma maneira? Quanto mais velho, mais difícil manter a forma física. Começo o preparo sem ter o roteiro. Sei que antes de saber as falas preciso estar em forma. Malhar é parte do processo de colocar minha mente em contato com o personagem. Nos primeiros filmes, eu levava em torno de três meses entre academia e dieta para estar pronto. No último, levei mais de seis meses para conseguir o mesmo resultado. É a idade, fazer o quê?

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    Há muitas especulações sobre o próximo James Bond, qual ator vai substituir o senhor e a pressão para alcançar o mesmo sucesso. O que pensa a respeito disso? Para ser bem honesto? Não é mais meu problema. Problema do próximo ator (risos). Estou muito em paz com minha jornada. Antes de mim, teve outro James Bond, e antes dele, outro, e assim por diante. Quando um próximo Bond surgir, prometo que irei ao cinema para assistir aos filmes. Talvez me sinta um pouco ressentido, mas vou ficar bem.

    Quem gostaria de ver como o próximo Bond? Sendo bem honesto de novo? Eu não dou a mínima. Só o aconselho, seja lá quem for, que faça um bom trabalho, dê tudo de si — e que, acima de tudo, se divirta.

    Quando seu nome foi anunciado para o papel choveram críticas contrárias, comparando-o aos atores que vieram antes. Ficou incomodado? Eu me lembro, mas não me incomodei. Era 2005, a internet se tornava esse lugar para ler notícias e também um buraco onde as pessoas criticam as demais. Eu não me deixei afetar. Sabia que faria um bom trabalho, e que não deveria olhar para trás. Não deveria copiar Pierce (Brosnan), Roger (Moore), Sean (Connery), Timothy (Dalton). Eles foram brilhantes na época deles, mas eu tinha de ser eu mesmo. Entrei nessa jornada em paz com o fato de que eu daria o meu melhor. Se desse certo, faria outro filme, e assim por diante, até saber que chegaria o momento de dizer adeus. Como chegou.

    Pode contar como foi seu último dia no set de filmagem? Foi anticlimático. Estávamos emocionados. Foi uma filmagem noturna. Terminamos por volta de meia-noite. A última cena que fiz foi em um beco. Eu saio correndo, viro a esquina e sumo. Havia um pouco de neblina. Não foi algo pensado, só aconteceu de ser assim minha última vez no figurino do James Bond: um clima melancólico e eu me distanciando da câmera e desaparecendo na neblina. Fiquei meio perdido após o “corta”, até que a equipe veio me abraçar, fizeram discursos e eu não consegui falar nada, pois estava chorando. Depois, ficamos bêbados. E foi isso. Assim me despedi do 007.

    Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677

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