‘Em alguns anos, será possível erradicar a obesidade’, diz executivo por trás do Mounjaro
No comando do laboratório que criou remédio para perda de peso, David Ricks também fala sobre os planos de prevenir o Alzheimer

No topo do ranking farmacêutico, a americana Eli Lilly tem o maior valor de mercado em todo o mundo, em torno de 750 bilhões de dólares. Parte de seu sucesso se deve, e muito, a um medicamento para tratar o excesso de peso, o Mounjaro, lançado no Brasil em junho deste ano — e atire a primeira “caneta” quem não ouviu falar, com certa graça, do “Dr. Mounjaro”, a arma contra os quilos a mais. No comando da operação desde 2017, o engenheiro americano David Ricks, de 58 anos (e quase três décadas de empresa), tem uma obsessão: a permanente busca por produtos inovadores. Durante esse tempo à frente da Lilly, Ricks deflagrou também o desenvolvimento de uma aguardada droga para o Alzheimer, ainda um desafio para a medicina. Em passagem recente pelo Brasil, mercado estratégico para o laboratório, o CEO concedeu entrevista exclusiva a VEJA. A seguir, os principais trechos da conversa.
O Mounjaro foi um divisor de águas para que a Eli Lilly chegasse ao topo entre as farmacêuticas? Eu diria que sim e não. Já estamos nesse caminho há um bom tempo, baseados em espírito inventivo, trabalho em equipe, forte comprometimento com pesquisa e desenvolvimento e uma profunda paixão por ajudar pessoas com doenças crônicas. Mas claro que a percepção pública sobre a Lilly mudou. Temos um produto com enorme demanda global e propriedades únicas, e é emocionante finalmente poder introduzi-lo no Brasil.
Qual é o segredo do Mounjaro? A maioria dos remédios para doenças crônicas que o médico nos manda tomar nem sempre nos faz sentir bem logo de cara. Mas ele nos diz que estamos melhorando e seguimos em frente. Com o Mounjaro é diferente. As pessoas já pedem para o médico. Tomam e se sentem melhor quase imediatamente. Notam mudanças no peso e, na verdade, seu estado de saúde está melhorando drasticamente. Não é só uma questão de emagrecer. É uma oportunidade de mudar o curso de diabetes, problemas cardiovasculares e outras doenças.
Daí a explosão de vendas? Talvez neste ano ou no próximo o Mounjaro se torne o medicamento mais vendido na história da indústria. E essa história não termina nele. Já temos outros produtos inovadores a caminho.
“Talvez neste ano ou no próximo o Mounjaro se torne o medicamento mais vendido da história da indústria. E a história não termina nele. Há outros produtos a caminho”
Então ele representa o início de uma revolução maior? Neste ano concluiremos o estudo com um remédio de uso oral que provavelmente será tão eficaz quanto o Mounjaro com a vantagem de ser um comprimido. Ou seja, é muito mais fácil de tomar e de escalar a produção em comparação com os injetáveis. E ainda temos um medicamento de tripla ação em fase final de pesquisa com efeitos ainda mais poderosos em termos de emagrecimento. Provavelmente não precisaremos desenvolver drogas que provoquem mais perda de peso do que ele.
Estamos, portanto, a caminho de aposentar a cirurgia bariátrica? Sim, com certeza. A cirurgia pode ser perigosa e provavelmente não é tão eficaz quanto alguns dos nossos medicamentos. Claro, algumas pessoas não toleram certos remédios ou não respondem a eles, então pode ser que a operação seja um último recurso. Mas há um paralelo interessante. No início dos anos 1980, a cirurgia mais comum nos Estados Unidos era a de úlceras de estômago. Depois do advento de remédios para gastrite e antibióticos para a bactéria H. pylori, hoje praticamente ninguém faz mais essa cirurgia. Significa que os cirurgiões estão fora do mercado? Não, eles estão atuando em outras coisas. É assim que a medicina evolui.
É possível sonhar com o fim da obesidade? Acredito que, em alguns anos, teremos a capacidade e a tecnologia para erradicar a obesidade globalmente. Assim como no passado criamos vacinas para conter e eliminar doenças infecciosas, acho que será possível deter certas doenças crônicas. E uma das chaves para isso é o controle do peso.
Mas a maioria dos brasileiros acima do peso não pode pagar por um remédio como o Mounjaro. Como resolver esse dilema do acesso? Sim, ele ocorre em todos os lugares. E por três razões. Primeiro, porque ainda há um estigma sobre a obesidade. Por mais que as entidades médicas já a classifiquem como doença, acho que a sociedade ainda não pensa dessa forma. Segundo, porque dieta e exercícios são fundamentais, mas sabemos pelos estudos que têm um efeito modesto. São úteis para a prevenção, mas, uma vez que as pessoas estejam acima do peso, é extremamente difícil emagrecer só com mudanças de hábito. O terceiro ponto é que os sintomas da obesidade vão além de suas proporções corporais. Estamos falando de mais inflamação, diabetes, risco cardiovascular. São fatores por trás de uma crise de saúde pública. Então precisamos de uma nova compreensão sobre como pagar pelo tratamento e repensar o financiamento público, que foi construído em torno de doenças agudas, não crônicas. Estamos conversando com os governos a respeito. Se pudermos modificar a trajetória da obesidade agora, mudaremos drasticamente os gastos com os cuidados de saúde.
Ainda assim, há quem veja e use o Mounjaro como uma solução mágica para atender a um apelo estético, não? Em primeiro lugar, nós não inventamos o medicamento por razões estéticas. Não o recomendamos fora do contexto da obesidade e do sobrepeso com fatores de risco. Mas certamente temos em mãos um produto altamente eficaz e seguro, que propicia perdas de mais de 20% do peso corporal. E funciona tão bem porque imita hormônios que regulam a sensação de saciedade. Porque nossos corpos foram projetados para um mundo muito diferente do atual. A genética nos selecionou para um ambiente de escassez. E agora vivemos em meio à abundância. Uma abundância de comida que se torna perigosa.
Há um problema no Brasil: a venda de remédios como o Mounjaro manipulados ou falsificados. Como lidar com isso? É muito preocupante — e um fenômeno global. Se voltarmos no tempo, veremos que nossa empresa foi fundada há 150 anos para fabricar medicamentos de qualidade, porque já naquela época vendiam produtos falsos, que prejudicavam as pessoas. Foi por isso que, como sociedade, criamos agências regulatórias. Um remédio é diferente de uma fruta que os consumidores podem avaliar na feira — eles não têm um laboratório de química em casa. Então há duas questões em jogo: uma é quando se permite que alguém produza um medicamento sem nenhuma das obrigações de uma farmacêutica de verdade; e a outra é que existem criminosos se aproveitando dos pacientes. Enquanto dois terços do custo de fabricação de nossos medicamentos hoje se devem ao sistema de garantia de qualidade, essas pessoas manipulam substâncias sem qualquer comprometimento com pesquisas ou controle para vender algo supostamente parecido ou mais barato. Isso causa danos aos pacientes e prejudica todo o sistema. É uma tragédia.
Tem solução? A Austrália é o melhor exemplo a seguir. Seus governantes perceberam que as pessoas estavam sendo prejudicadas e disseram: “Não vamos permitir isso”. E reprimiram. Buscamos uma parceria do governo brasileiro para ajudar a acabar com esse problema. E tenho certeza que a Novo Nordisk (fabricante do Ozempic) também.
“Assim como fizemos com algumas doenças infecciosas, acredito que, em alguns anos, teremos a capacidade e a tecnologia para erradicar a obesidade”
Por falar no concorrente, a Lilly comparou em estudo o Mounjaro com a semaglutida, do Ozempic, e se saiu melhor. Considera a batalha vencida? Estamos diante de uma nova geração de medicamentos para a obesidade. E, assim como a Lilly, acredito que a Novo Nordisk esteja trabalhando arduamente para criar remédios cada vez melhores. Nessa rodada, no estudo que comparou as duas medicações, a nossa ofereceu quase 50% a mais de perda de peso e um pouco menos de efeitos colaterais. Mas logo eles apresentarão algo novo. Vamos continuar a competir. Fazemos isso há 100 anos. Essa corrida é positiva para as empresas e os pacientes.
O Mounjaro também se candidata a tratar outras doenças? Ele já se tornou o primeiro medicamento para apneia do sono da história e já temos dados sobre seus efeitos sobre um tipo de insuficiência cardíaca. Mas existem outros usos em potencial e fascinantes. Estamos testando a tirzepatida junto a outra medicação para psoríase, devido a seu efeito anti-inflamatório, e investigando seu impacto sobre impulsos de prazer e vícios, bem como ansiedade e depressão.
Como a guerra comercial de Trump interfere no setor farmacêutico? Há muito tempo nos opomos a tarifas extras sobre medicamentos. Mas essas taxas existem em muitos países, não são uma novidade americana. A questão é que adicionar impostos torna mais difícil investir e atrapalha o acesso aos produtos. Não gostamos disso. O que o governo Trump busca é reestruturar as relações comerciais com seus parceiros, inclusive o Brasil, e arrecadar mais. Como executivo, entendo isso. É uma tática de negociação. Tenho esperança de que, se essas discussões ajudarem os países a aprimorar suas relações comerciais, possa ser algo positivo.
Vocês estão trazendo um novo remédio para o Alzheimer. Como ele muda o combate à doença? Sim, o Kisunla é um anticorpo que funciona melhor quanto mais cedo se detecta o problema. E o desafio, hoje, é fazer o diagnóstico precoce. As pessoas ainda acham que perda de memória é normal com o envelhecimento, o que não é verdade. O padrão ouro para averiguar a doença é um exame de PET scan, um método caro e complicado. Então nós e outras empresas trabalhamos para criar um teste de sangue que, embora não seja tão preciso, é bom e barato. Ele permitirá rastrear o Alzheimer na atenção primária. E, quanto mais cedo interviermos, melhor para os pacientes. Agora estamos fazendo um experimento com esse exame para encontrar pessoas com o marcador positivo, mas sem sintomas, e a ideia é usar nosso medicamento para prevenir o Alzheimer desde o início. Esse é o futuro.
Quais suas expectativas para o Brasil? Estou aqui porque acredito que o país pode assumir uma nova relevância. As nossas soluções se encaixam nos problemas do Brasil. O país é uma economia em ascensão, com crescimento de renda, e, infelizmente, doenças crônicas como diabetes e câncer tendem a piorar com a riqueza. Então temos um alinhamento nesse sentido, e o Brasil tem a vantagem da flexibilidade, com mercados público e privado importantes.
Qual a receita para ser a farmacêutica mais valiosa do planeta? Tomamos decisões que nos permitiram focar em drogas inovadoras e comprometer nossos recursos nisso. Temos 11 000 cientistas. É o nosso maior departamento. São 4 000 ph.Ds., mais do que Harvard. Só neste ano vamos investir 14 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento, mais que a economia da Alemanha. O que nos diferencia é alimentar a curiosidade. Não queremos ser a empresa que sabe mais, mas a que aprende mais.
Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954