“Estamos escorregando para o autoritarismo”, diz Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, sobre os EUA
O americano critica o protecionismo de Trump e defende um novo modelo de capitalismo capaz de reduzir as desigualdades no mundo
Aos 82 anos, o americano Joseph Stiglitz continua sendo uma das vozes mais influentes da economia mundial. Em entrevista exclusiva a VEJA, o ex-economista-chefe do Banco Mundial e ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2001 fala sobre O Caminho para a Liberdade, livro lançado em 2024 e traduzido recentemente para o português. A obra nasceu em meio à intensa polarização política no mundo e ao avanço do autoritarismo nos Estados Unidos. Nela, Stiglitz procura recolocar a liberdade no centro do debate público, observando com preocupação o cenário dos Estados Unidos. “Estamos escorregando para o autoritarismo”, afirma. Ainda assim, ele mantém certo otimismo. Stiglitz acredita que o desgaste do atual sistema político e econômico mundial pode abrir espaço para uma nova ordem, mais equilibrada, mais inclusiva e, afinal, mais democrática. Confira os principais trechos da conversa.
O que o motivou a escrever O Caminho para a Liberdade? Os Estados Unidos têm passado por muitas controvérsias em torno da noção de liberdade e quais são seus limites. Em todos os casos, fica claro que a noção de liberdade de uma pessoa interfere na de outra. Ou seja, não se pode ter uma noção de liberdade absoluta. Eu esperava que o livro ajudasse os democratas a vencer a eleição. Era meu sonho mais otimista. Evidentemente, não funcionou. Mas, por um tempo, Kamala Harris (candidata democrata à Presidência) fez da liberdade o centro de sua campanha. Então, de certa forma, a obra teve algum impacto no debate público.
O que significa ser livre? A direita conservadora não compreende bem esse conceito. Há um grupo forte nos Estados Unidos, os libertários, que acham que sabem o que é liberdade. Na minha visão, eles não entendem de fato, especialmente como a liberdade de uma pessoa pode afetar a de outra. Nós, democratas, temos uma compreensão melhor do que liberdade realmente significa.
O que é exatamente? Se alguém está à beira da fome, essa pessoa não é verdadeiramente livre. Liberdade tem a ver com seu potencial de realização, com sua capacidade de viver plenamente com as escolhas que você tem e com o conjunto de oportunidades disponíveis.
As redes sociais precisam ser controladas de alguma forma? Não existem direitos absolutos. Por exemplo, na minha visão, o direito de portar um rifle AK-47 tira o direito de outras pessoas viverem. E eu não vejo nenhum valor nisso. Então, essa é uma decisão fácil. Mas algumas questões sobre liberdade de expressão são mais difíceis, como a regulamentação das redes. Nós, como sociedade, já tomamos algumas decisões que, acredito, representam esse tipo de equilíbrio.
Que decisões foram essas? Pornografia infantil não é permitida. Então, identificamos algumas circunstâncias em que, mesmo sendo muito apegados à liberdade de expressão, reconhecemos que certos tipos de discurso causam danos sociais e tomamos atitude quanto a isso. O mundo mudou. É difícil encontrar o equilíbrio entre restrição e censura, mas é possível.
“Se alguém está à beira da fome, essa pessoa não é livre. Liberdade tem a ver com seu potencial de realização, com sua capacidade de viver plenamente com as oportunidades disponíveis”
Esse argumento não pode ser usado por governos autoritários para justificar a prática da censura? É um risco real, mas governos autoritários vão fazer o que quiserem de qualquer forma, do jeito que entenderem. Nós, democratas, precisamos construir instituições que funcionem para nós, reconhecendo que, se nos tornarmos autoritários, tudo estará perdido.
Há uma escalada autoritária em curso nos Estados Unidos? Estamos escorregando para o autoritarismo. Há, claramente, uma tentativa de restringir nossa liberdade de expressão. Mas isso não é feito da maneira que estamos acostumados. O que se tenta fazer agora é restringir o fluxo de informação, com ataques ao jornalismo profissional e às universidades. Os Estados Unidos ainda não são um regime autoritário de fato. Mas está muito claro que o país passou a adotar práticas autoritárias.
A desigualdade nos Estados Unidos voltou a crescer. O que está dando errado no país? Muitas coisas. Falhamos em aplicar de forma eficaz políticas antitruste, porque há oligarcas ao redor do presidente Trump. Falhamos em conter o poder do dinheiro na política, o que permitiu regras que favorecem os ricos a ficarem ainda mais ricos. Falhamos em ter um sistema educacional de qualidade. Falhamos em implementar impostos sobre herança adequados, o que perpetua a situação de desigualdade. Não temos uma tributação progressiva.
O Brasil está discutindo uma reforma tributária que trata dessas questões, mas tem enfrentado resistências. O que podemos aprender com a experiência americana? Nos Estados Unidos — e imagino que no Brasil também —, as pessoas no topo pagam menos impostos do que aquelas um pouco abaixo. Tributamos o capital menos do que tributamos o trabalho, o que significa que os ricos ficam mais ricos e os trabalhadores têm dificuldade para ascender. É natural que isso gere resistência. Para reduzir desigualdades de forma eficiente, porém, precisamos endereçar também o mercado de trabalho.
De que forma? Muitos americanos comuns não estão recebendo a educação necessária para serem produtivos na sociedade como poderiam ser. E isso leva a salários mais baixos. A globalização forçou nossos trabalhadores a competir com mão de obra barata de outros países, mas não lhes demos as habilidades para se atualizarem.
O senhor se define como um “capitalista progressista” e defende um modelo econômico baseado no mercado, mas comprometido com justiça social. Há espaço para isso no mundo atual? Sim, sou um otimista. Há muito descontentamento com a versão atual do capitalismo. Quase todo mundo concorda que não está funcionando. A expectativa de vida está caindo, a polarização está aumentando, o crescimento está em queda. Falamos sobre uma economia inovadora, mas isso não aparece nas estatísticas do PIB.
Esse desalento não explica a eleição de políticos com inclinações autoritárias? Esse é um risco. Trump, na realidade, é reflexo desse descontentamento. Ele responde a isso tirando proveito, usando o desalento para seus próprios interesses e os de seus amigos oligarcas — mas essa estratégia não vai entregar resultado. Uma alternativa ao descontentamento é o capitalismo progressista. Essa é uma resposta genuína, que realmente pode abordar as causas do problema.
Como avalia o impacto das tarifas comerciais impostas pelos Estados Unidos a países como Brasil? Um desastre. Isso implodiu as regras do jogo do comércio internacional, que é algo que tentamos construir há oitenta anos. A bem da verdade, os Estados Unidos e a Europa já minavam as bases do comércio internacional, ao serem injustos com países em desenvolvimento e mercados emergentes, em benefício de suas corporações e grandes instituições financeiras. Agora, Trump diz que essas regras são injustas com os Estados Unidos, o que é irônico e absurdo. Quem deveria estar reclamando — e não é de hoje — é o resto do mundo.
“Estou preocupado com o que está acontecendo nos Estados Unidos na gestão Trump. A democracia americana está sob ataque. E, para ser franco, não sei se ela vai sobreviver”
O que vai ditar o comércio internacional no novo cenário? A força. Trump quer usar o poder dos Estados Unidos para abocanhar uma fatia maior do valor gerado pelas cadeias globais de produção. Penso que, ao fazer isso, seremos os mais prejudicados, mas o mundo todo também sofrerá, especialmente com a desintegração global.
Quais as consequências dessa nova ordem econômica global? Trump está introduzindo uma enorme incerteza no mundo. E empresas não gostam disso. Ele também está gerando enorme antipatia e desconfiança. O Canadá, por exemplo, nem precisa impor tarifas contra os Estados Unidos, porque os canadenses não querem comprar produtos americanos. Estão ressentidos. Além disso, o setor de serviços, como educação e turismo, está prejudicado. Nessas duas áreas, Trump deu um tiro no pé. Ninguém vai querer vir para cá — nem para passear nem para estudar.
Trump subestimou o impacto da política protecionista? As tarifas vão levar a preços mais altos. Isso não acontece imediatamente. O aumento das taxas foi relativamente moderado, ou seja, o latido foi pior que a mordida. E, quando confrontado com um governo forte como o da China, Trump amarelou. Agora, o que vai acontecer é que os países vão reorganizar suas cadeias de suprimentos para reduzir o poder dos Estados Unidos. Então, no fim das contas, vamos sofrer tanto com preços mais altos quanto com perda de influência.
A política protecionista pode desencadear uma nova guerra comercial? Muitos países não querem entrar em uma guerra comercial com os Estados Unidos, então eles aceitam negociar certas coisas, como promessas de investimentos e compras de produtos americanos. Mas são promessas falsas para agradar o tirano. Os países que fazem esses acordos não têm uma economia centralizada. Em economias liberais, são decisões individuais de empresas e famílias que determinam investimentos e compras.
Qual o papel das economias emergentes, como o Brasil, na reconfiguração da nova ordem econômica global? Fundamental, porque esses países representam uma fração muito grande dos negócios. E Trump não entende isso. Os Estados Unidos representam 13% do comércio global, mas essa fração já foi de 20%. Em termos econômicos, não somos mais a superpotência que éramos. Depender dos Estados Unidos é arriscado. Haverá uma nova ordem. E os Estados Unidos serão os grandes perdedores.
O senhor é otimista quanto ao futuro das democracias ocidentais? Estou particularmente preocupado com a democracia, dado o que está ocorrendo nos Estados Unidos sob a administração Trump. É um governo que tenta descredibilizar a imprensa e as universidades. A democracia americana está sob ataque. E, para ser franco, não sei se ela vai sobreviver.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2025, edição nº 2968
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