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“Foi inaceitável”, diz presidente do Carrefour sobre morte de João Alberto

O caso ainda afeta a rotina da rede francesa e levou o executivo Noël Prioux, que comanda a empresa no Brasil, a rever radicalmente a operação de suas lojas

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 13h43 - Publicado em 12 fev 2021, 06h00

Quando aceitou o desafio de comandar a subsidiária brasileira da tradicional rede de supermercados Carrefour, em 2017, o executivo francês Noël Prioux não imaginava que seu maior desafio seria enfrentar uma violenta crise de imagem que quase destroçou a reputação da empresa no país. Na véspera do Dia da Consciência Negra, na noite de 19 de novembro do ano passado, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, foi espancado até a morte por dois seguranças a serviço da empresa numa unidade de Porto Alegre (RS). O caso inflamou a população, que foi às lojas da rede em várias capitais para protestar — algumas chegaram a ser depredadas. “Foi um fato inaceitável para nós. Estamos aprendendo ainda como lidar com as consequências, mas já tomamos algumas decisões importantes”, explicou o presidente do Carrefour Brasil a VEJA em entrevista por videoconferência. Radicado no país desde 2017, ele afirma que sua maior lição nesse período foi se tornar um antirracista convicto.

Como foi sua reação à notícia da morte de João Alberto? Foi um choque muito grande. Não é o comportamento que estávamos esperando de um funcionário a serviço da empresa. Diante desse fato lamentável, a primeira ação foi ajudar a família. No dia seguinte ao ocorrido, tomei a decisão de telefonar ao pai do João Alberto. Pedi perdão. Fiquei muito emocionado com o que ele me disse naquele momento de dor e tristeza. Além de ouvir o nosso pedido de desculpa, ele disse que esperava que esse triste acontecimento se transformasse em algo positivo para o futuro das famílias negras deste país. Depois dessa conversa, contratamos uma assistente social para apoiar a família e criamos um comitê independente de inclusão e diversidade para a implantação de ações afirmativas na empresa.

Foi um caso de racismo? Não acho que o caso aconteceu devido à cor da pele do João Alberto. Foi um comportamento inaceitável, isso sim. Era um funcionário que estava lá pela primeira vez, que decidiu acompanhar o João para fora porque ele havia demonstrado indícios de agressividade. Na nossa visão, cabe à Justiça decidir se foi racismo. Mas era a véspera do Dia da Consciência Negra, um momento importante para as pessoas do país. Em um momento de celebração das famílias negras, esse fato foi inaceitável.

E o que foi feito para prevenir que novos casos do tipo aconteçam? Nós assumimos a responsabilidade imediatamente e procuramos tratar de entender o que poderíamos fazer para que isso não acontecesse de novo. Criamos um comitê para olhar além do Carrefour e entender a reação do público. Aprendemos mais sobre o racismo estrutural que existe no Brasil e quais eram as atitudes que a população esperava por parte da empresa. Estamos aprendendo ainda, mas já tomamos decisões importantes. Depois de ajudar os familiares, decidimos romper o contrato com as empresas de segurança para internalizar esse serviço, aplicando novas regras para contratação. Queremos contratar mais mulheres e mais negros para melhorar a representatividade da população brasileira na nossa operação. Queremos estreitar laços com os clientes, com as famílias em geral, que estão vivendo um momento delicado por causa da pandemia. No dia seguinte à agressão, realizamos um treinamento para mais de 30 000 pessoas e mostramos que temos responsabilidade com o que aconteceu.

“Além de querer ouvir nosso pedido de desculpas, o pai de João Alberto disse que esperava que esse triste acontecimento se transformasse em algo positivo para as vidas negras deste país”

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Mas não foram apenas colaboradores externos envolvidos no caso. Havia funcionários do Carrefour, incluindo a funcionária que gravou a ação. De fato, não podemos permitir que qualquer pessoa faça um filme, quando o processo seria completamente outro. Adequamos os processos, reiteramos qual é o comportamento adequado. Não queremos conflitos em nossas lojas. Após o incidente, fizemos uma investigação real e dois dias depois, cinco funcionários estavam fora do Carrefour.

O que aconteceu não se deve, ao menos em parte, à cultura de prevenção de perdas e riscos, o que inclui furtos de mercadoria, cuja escola é um orgulho para o Carrefour? O que aconteceu não esteve ligado a ganhar dinheiro a qualquer custo. Apenas quinze dias antes, realizamos um treinamento sobre comportamento com o cliente, que indicava que as ações corretas eram justamente as contrárias das praticadas naquela situação. É preciso saber lidar com isso, mesmo porque não podemos chamar a polícia toda vez que algo acontece em nossas lojas.

Dois anos antes, um cachorro foi morto dentro de uma unidade do Carrefour. Por que esses eventos tão próximos? O que aconteceu naquele caso foi diferente. Pensamos em fazer com que os cães sejam bem tratados, mas também não podemos tê-los dentro das lojas. Fizemos algumas iniciativas com empresas dedicadas ao bem-estar animal para que, cada vez que apareça um cachorro, alguém especializado apareça para cuidar dele. Nós tratamos de entender qual era a situação, tomar as decisões e encontrar uma maneira para que isso não volte a acontecer.

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Nos Estados Unidos, uma série de protestos por conta da morte de Geor­ge Floyd levou ao boicote de diversas lojas. O que esse caso ensina para as empresas em geral? No nosso caso, nós assumimos a responsabilidade. O fato foi dentro do Carrefour. Tínhamos de assumir a nossa responsabilidade. Mas mais do que falar, real­mente nós tratamos de fazer uma mudança para que esse caso signifique a construção de um caminho completamente diferente. Dois ou três dias depois da morte do João Alberto, um grupo de fornecedores nos chamou para fazer reuniões para entender o que aconteceu, mas, acima de tudo, saber como prevenir esse tipo de situação. Eles queriam saber o que nós faría­mos para não deixar que esse tipo de coisa acontecesse novamente. Começamos a falar das primeiras ideias de ações que nós teríamos, como o comitê e os novos contratos com prestadores de serviços, onde incluímos pontos antirracistas importantes. Não é preciso somente entender que existe o racismo, mas, sim, somar ações que permitam mudar esse comportamento, mudar esse racismo estrutural que está enraizado no Brasil. Nós poderíamos não fazer nada, mas consideramos que era importante mostrar que podemos mudar e transformar as nossas lojas no Brasil em um modelo de segurança, aplicar uma política de tolerância zero para o racismo. Não é fácil, mas é isso que nós queremos. Temos de ser antirracistas.

Em algum momento o episódio, ou mesmo a situação delicada da economia, levou a empresa a reavaliar sua atuação no mercado brasileiro? Não. Nós não vamos parar. A melhor maneira de ajudar o país é gerando empregos, principalmente neste momento em que a economia não está muito bem. Isso é muito importante. No ano passado, o nosso capital de investimento foi acima de 3 bilhões de reais, levando em consideração a compra da rede Makro. Vamos manter um patamar de investimento de cerca de 2 bilhões de reais neste ano. O importante é ver como nós podemos ajudar as famílias. Vamos fazer isso colocando dinheiro na economia e trabalhando bem a nossa política de preço. Acho que é importante manter a visão de que o Brasil vai voltar a encontrar o caminho do crescimento. O momento é difícil para todos no mundo, mas nós temos a confiança de que o grupo Carrefour quer continuar investindo no Brasil. Vamos seguir assim.

O governo deve fazer uma nova rodada do auxílio emergencial. No último ano, isso ajudou no crescimento de supermercados no Brasil. Como o senhor enxerga essa movimentação? O ano de 2020 foi desafiador para todo mundo, mas o resultado do Carrefour foi muito bom. Todas as decisões que tomamos nos últimos anos estão trazendo bons resultados. O auxílio emergencial foi muito importante para o nosso desempenho. Considero importante ajudar as famílias em momentos difíceis, como o que estamos vivendo hoje. Por isso acredito que um possível retorno do auxílio será importante para ajudar as famílias (veja reportagem na pág. 44). Por outro lado, não podemos ficar esperando isso. Temos de encontrar formas de crescer sem depender disso.

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Como o senhor enxerga o comportamento do cliente no atual momento econômico? Eles estão comprando muito mais nas nossas lojas do que antes, e por isso o crescimento dobrou em relação aos demais concorrentes. Diminuímos promoções nos fins de semana e as puxamos para os dias úteis. Como nos organizamos para uma inflação um pouco mais alta, conseguimos trabalhar melhor a nossa política de preço. O que explica o nosso crescimento é a redução dos preços e o acesso ao crédito. Foi um momento difícil para o cliente, mas encontramos boas soluções. Os momentos de maior isolamento social acabaram nos ajudando, sim. Mas muitos setores conseguiram compensar essa suspensão das atividades com a decisão de vender mais pela internet. Acho que neste ano isso vai se repetir.

“Vamos manter um patamar de investimento de cerca de 2 bilhões de reais neste ano. O importante é ver como nós podemos ajudar as famílias. Vamos fazer isso colocando dinheiro na economia”

O senhor está esperançoso em relação às reformas estruturantes que podem ser aprovadas no Congresso? Nós acreditamos no futuro do Brasil. As empresas querem ver o Brasil bem, mas por outro lado a complexidade do modelo tributário e fiscal é muito grande. Isso é complicado. Temos de simplificar os processos. Para mim, que sou francês, eles são realmente muito complicados. Vamos continuar acelerando, vemos que existem oportunidades e esperamos que nossos deputados tenham consciên­cia deste momento importante do Brasil para fazer as reformas que precisam ser feitas. Todo mundo tem de fazer a sua parte para ajudar, nós e as autoridades competentes.

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O senhor está no Brasil há quatro anos, e antes havia comandado a operação do Carrefour na Espanha. Sente saudades da Europa? Quer voltar? Moro em São Paulo, que é uma cidade rara. O trânsito é um pouco desafiador, mas podemos caminhar, ir a bons bares, restaurantes, cinemas, museus — embora com a Covid-19 isso tudo seja bem mais difícil de usufruir. Eu não quero voltar para a Europa. Quero ficar aqui. Compartilho da visão de longo prazo que o Carrefour tem para o Brasil. Nós tomamos a decisão de acelerar os investimentos no país nos últimos dez anos e vamos acelerar agora novamente, gerando valor para a economia e emprego para os brasileiros. É a minha missão. Eu quero ter orgulho das ações que tomamos na empresa. É isso que me interessa no Brasil.

Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725

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