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José Padilha: “Fui um idiota de ter acreditado em Sergio Moro”

Arrependido por ter retratado o ex-juiz como herói na série 'O Mecanismo', o diretor fala hoje que não havia mocinhos na Lava-Jato

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 11h52 - Publicado em 27 Maio 2022, 06h00
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  • O diretor José Padilha -
    O diretor José Padilha – (Gilberto Tadday/VEJA)

    O cineasta José Padilha, de 54 anos, nunca fugiu de temas espinhosos. Ele desmontou a hipocrisia sobre o tráfico em Tropa de Elite (2007), examinou as milícias em Tropa de Elite 2 (2010) e a guerra internacional às drogas na série Narcos, da Netflix. Padilha se posicionou com a clareza usual em O Mecanismo (2018), série da mesma Netflix que colocou Sergio Moro como herói da Operação Lava-Jato. Mas, após as revelações sobre a conduta do ex-juiz e sua conversão em ministro de Jair Bolsonaro, fez seu mea-culpa. Submergiu em seguida na pandemia, para se devotar aos próximos projetos em Hollywood, como o longa de ação Sharp e uma minissérie sobre as controversas filmagens de Último Tango em Paris (1972). Na entrevista, Padilha quebra o silêncio — e a rotina dividida entre roteiros e o surfe em Newport Beach, na Califórnia — para falar sobre Lava-Jato, Bolsonaro e cinema.

    Após transformar os procuradores da Lava-Jato e o juiz Sergio Moro em heróis na série O Mecanismo (2018), o senhor já se disse arrependido. Como seria o script se a história fosse feita hoje? Olhando friamente para a Lava-Jato, minha opinião sobre a corrupção revelada na operação não mudou. Não dá para apagar a roubalheira, até porque as pessoas fizeram acordos para devolver bilhões de reais aos cofres públicos. Não tem como negar que, desde o mensalão até o fim dos governos do PT, houve uma corrupção institucionalizada gigante. E essa corrupção não era só exclusiva do Partido dos Trabalhadores, ela envolvia outros partidos. Estavam lá o Delcídio, o José Serra e o Sérgio Cabral. Apareceu a corrupção geral daquilo que chamo de Mecanismo. Não restam dúvidas de que o mecanismo existiu, e ainda existe. O que mudou, na minha opinião: quando vazaram as mensagens trocadas entre o Ministério Público e o Moro, ficou óbvio que a condução da Lava-Jato não foi republicana.

    A Lava-Jato foi uma decepção? Foi uma perda de oportunidade para o Brasil. Se eu fosse refazer O Mecanismo, não ia ter herói nenhum. Ia ter só bandido dos dois lados. Um lado roubando os cofres públicos, o outro deturpando as leis processuais para atingir objetivos — que depois viraram objetivos políticos, sim. Ficou bem claro que teve uma perseguição. Não estou dizendo que o Lula não sabia da corrupção. Evidente que sabia. Mas ficou óbvio que houve uma exacerbação dos casos contra o Lula para tirá-lo da eleição. Se refizesse O Mecanismo, não é que o PT seria melhor, é que seria tudo ruim. O PT, o Ministério Público, o Sergio Moro. Estava tudo errado ali.

    Por que não percebeu isso na época? Demorei para ver, mas, quando vi, escrevi num artigo: “Estou errado”. O que é uma atitude que não vejo no Brasil. Aí, o cara erra e nega até o fim dos tempos. Todo mundo vê, está cheio de gente que sabe o que aconteceu, o PT sabia, e a liderança do PT sabia do mecanismo, mas finge que não sabe, né? Não dá o braço a torcer. Eu gosto de lidar com evidências. Minha opinião muda ao aprender com os fatos.

    Em O Mecanismo, o Supremo Tribunal Federal não escapa de farpas. Sua opinião sobre o tribunal mudou? Eu mantenho a visão que a série tem sobre o STF: que é bagunçado, não é coerente, faz política. Tanto é assim que demorou cinco anos para descobrir que o foro do Lula estava errado. Quantas decisões o STF proferiu sobre o caso do Lula por tantos anos até descobrir que o foro estava errado e soltá-lo? É uma irresponsabilidade inconcebível.

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    “A Lava-Jato foi uma perda de oportunidade para o Brasil. Se fosse refazer hoje O Mecanismo, não ia ter herói nenhum, só bandido. O PT, o Ministério Público, o Moro. Estava tudo errado ali”

    Concorda com a teoria de que o juiz Moro ajudou a eleger Jair Bolsonaro? O Moro é a maior decepção que já tive na Justiça e na política brasileira. Ele virou ministro do Bolsonaro após uma eleição na qual ajudou a eliminar o Lula. E no minuto em que você faz isso e vira ministro do cara que foi eleito, demonstra claramente qual o seu caráter.

    Diante do discurso anticorrupção de Bolsonaro na campanha, não fazia sentido Moro apoiar seu governo? De modo algum. Quando ele virou ministro, escrevi que ele era o oposto dos juízes italianos que lutaram contra a máfia, porque o Bolsonaro é ligado à milícia. A milícia é máfia, então como pode o cara que se diz um juiz corajoso, que quer aplicar a lei como os juízes italianos se juntar ao candidato das milícias? Moro sabia que Bolsonaro representava isso. Ele não iria trabalhar para um presidente sem pesquisar um pouco sobre a vida dele. Em suma, eu fui naïve. Fui ingênuo. Mas não só eu, um monte de gente caiu na mesma ilusão.

    A que se deveu sua empolgação com a operação? No Brasil, a corrupção é tão disseminada que determina a lógica da política, e talvez seja a principal causa da miséria. Então, quando você vê que tem alguém expondo isso, pensa: opa, os empreiteiros e políticos que eram acima da lei agora não são mais. Você acha isso bom, tem um valor heurístico. A operação revelou uma coisa essencial para o brasileiro. E está aí o crime da Lava-Jato: ela teve a chance de fazer direito, e não fez. Mas quero dizer uma coisa: Lava-Jato à parte, o imperativo do Brasil é tirar o Bolsonaro do governo. Com Bolsonaro e Lula no segundo turno, eu voto no Lula.

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    Mesmo já tendo chamado Lula de “picareta”? Voto nele sem pestanejar. Pois não adianta viver no mundo ideal, abstrato, descolado do que ocorre. A escolha está dada para o brasileiro.

    O que está em jogo, na sua visão sobre o país? O Bolsonaro é um mentecapto, vou colocar assim. O Bolsonaro é um sujeito que traz em si todas as características do miliciano do Tropa de Elite 2. O final do Tropa 2, que mostra os milicianos chegando à política, foi profético de uma maneira que eu gostaria que não tivesse sido.

    Até que ponto a ascensão de Bolsonaro estava anunciada no filme? Esse fenômeno estava acontecendo de fato. Tinha candidato de milícia sendo eleito para o Congresso. Eu não esperava que fosse chegar à Presidência, muito menos com um sujeito tacanho, imoral, desqualificado, como o Bolsonaro é. O objetivo número 1 de qualquer brasileiro racional é tirar o Bolsonaro da Presidência. É um imperativo ético, moral. O governo Bolsonaro é horroroso, não só pelo que fez durante a Covid. É o que ele fala, é o apoio à tortura, é a destruição da Floresta Amazônica.

    Há doze anos, Tropa de Elite 2 dissecava a lógica perversa das milícias cariocas. Como avalia o poder delas hoje? O Rio de Janeiro é totalmente tomado por milícias. E agora tem a narcomilícia, que vende droga. E a milícia continua elegendo gente. É esse pessoal que elegeu o Bolsonaro, a quem o Moro se juntou. Por isso eu o chamei, lá atrás, de “anti-Falcone” (juiz que conduziu a Operação Mãos Limpas na Itália e foi assassinado em 1992). O cara se associou aos milicianos, aos mafiosos, é inacreditável essa trajetória. Realmente, eu fui um idiota de ter acreditado em Sergio Moro.

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    O senhor abordou o tráfico de drogas no Rio em Tropa de Elite, e depois na Colômbia e no México em Narcos. Há pontos que unem essas realidades? A ideia fundamental de Narcos e também de Tropa de Elite é a seguinte: a droga é um produto. Como tal, ela só é viável quando há demanda. E as políticas para lidar com o problema só focam na oferta. Eu vou lá na Colômbia e mato o Pablo Escobar — foi o que os americanos fizeram, ou ajudaram os colombianos a fazer. Depois, foi a mesma coisa em Cali ou no México. A ideia de que é possível resolver o problema exclusivamente pela repressão é um erro. O mais importante é lidar com a demanda, o lado do consumo das drogas. É um desafio social. Para lidar com isso, tem de ter legislação eficaz e discutir a legalização sem maniqueísmos.

    O senhor é dos poucos cineastas brasileiros atuais com uma carreira em Hollywood. Quais os desafios para vencer no mercado americano? É difícil fazer filme em Hollywood porque você não controla a parte artística do projeto. Escrevi com autonomia Tropa de Elite, Tropa de Elite 2 e o começo do Narcos, junto com o Chris Brancato. Todas as outras coisas que fiz já não foram assim. Você tem de aceitar que, num filme como RoboCop, não vai controlar tudo. Na minha carreira aqui, foquei muito mais em roteiro que em direção. E tem de ter paciência. Mas o fato de alguém atuar em Hollywood não significa que seja melhor que o sujeito que só faz cinema no Brasil. Temos cineastas incríveis que poderiam trabalhar nos Estados Unidos. Um exemplo é o Breno Silveira (morto há duas semanas, aos 58 anos). As pessoas se lembram de 2 Filhos de Francisco, mas o que Breno fez pelo cinema brasileiro tem influência enorme.

    “O final do filme Tropa de Elite 2, que mostra os milicianos chegando à política do país, incluindo o Congresso, foi profético de uma maneira que eu gostaria que não tivesse sido”

    Como avalia a disputa entre o cinema e o streaming? Eu choro, porque amo cinema e gostaria que a demanda fosse por filmes na tela grande. Mas as televisões ficaram maiores, e as pessoas querem ficar em casa vendo streaming. Eu não consigo dar para o cara o terno que não cabe nele. É uma briga difícil, mas o cinema não morreu. Diversos filmes ainda estão indo bem nas telas, como as produções da Marvel e o novo Top Gun do Tom Cruise. Não desmereço esses filmes, não. É muito difícil fazer uma superprodução assim.

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    Foi realmente traumática sua experiência na direção de RoboCop (2014)? Foi muito difícil fazer RoboCop. Não era meu roteiro e eu não sabia operar uma produção daquela magnitude. Mas RoboCop é um filme que ganhou dinheiro, e trouxe grandes oportunidades para mim. Gary Oldman virou meu amigo — junto com o Wagner (Moura) e o Michael Keaton, é o melhor ator com quem eu já trabalhei na vida. Samuel L. Jackson também foi ótimo. Mas dirigir um filme gigante foi uma experiência que me traumatizou. Tentei fazer do meu jeito, e não funciona assim. Foi um aprendizado.

    Tempos atrás, Wagner Moura revelou que parou de trocar mensagens com o senhor por divergências políticas. Qual a razão da desavença? Eu diria que o Wagner teve muito mais clareza que eu com relação à natureza da Lava-Jato. E eu tive mais clareza que ele com relação ao Partido dos Trabalhadores. Os dois estavam errados, na minha opinião. Mas é uma burrice você criar picuinha e estresse com um amigo por divergências em torno de política. Eu dou meu braço a torcer, e digo aqui: Wagner, você tinha toda a razão sobre a Lava-Jato. Sem problema nenhum.

    O que pensa da mobilização de astros de Hollywood como Leonardo DiCaprio contra Bolsonaro por causa da Amazônia? Vejo como legítima. A visão dos militares sobre a Amazônia, refletida pelo Bolsonaro, sempre foi de cunho paranoico e delirante, com suas ideias de que vão tomar a Amazônia. É uma mentalidade tão tacanha que nem consegue ver a importância da Amazônia para a biodiversidade ou o clima. Os povos nativos não são levados em conta. Leonardo DiCaprio está certo.

    Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791

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