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“Lula me decepcionou”, diz economista turco Daron Acemoglu

Uma das principais referências em estudos sobre desigualdade social diz que o presidente errou ao permitir que a China se tornasse influente demais

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 10h18 - Publicado em 20 out 2023, 06h00

O economista turco Daron Acemoglu, professor do renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e coautor do best-seller Por que as Nações Fracassam, se tornou nos últimos anos uma das vozes mais incisivas contra a desigualdade social. Para Acemoglu, os programas de distribuição de renda, como os criados nos primeiros mandatos presidenciais de Lula, cumpriram seu papel, mas não são mais suficientes. Na entrevista a seguir, ele afirma estar desapontado com o presidente brasileiro, que não teria feito nada para impedir o domínio dos chineses sobre o Brics, acrônimo que reúne um grupo de países emergentes. “É evidente que estamos trilhando um caminho que coloca o Brics sob a influência da China, enquanto o mundo em desenvolvimento necessita de uma voz independente”, diz. Acemoglu fala sobre o papel das instituições para preservar as democracias e analisa o impacto da corrupção sistêmica no desenvolvimento econômico do Brasil. Confira os principais trechos da entrevista.

Uma de suas abordagens na área econômica diz respeito ao combate às desigualdades sociais. O que seria preciso fazer para reduzi-las? Há várias políticas econômicas que podem desempenhar papel importante nesse sentido. Um exemplo notável é o Brasil nos primeiros mandatos do presidente Lula, que implementou programas sociais como o Bolsa Família e investiu fortemente em educação. No entanto, é importante destacar que a abordagem não deve se limitar apenas a transferências diretas de renda.

Qual seria a estratégia mais eficaz? Ela está relacionada ao mercado de trabalho. Isso envolve a criação de oportunidades para pessoas de diferentes níveis de habilidade e a prevenção do poder excessivo de tecnologias e corporações no mercado de trabalho. Os países nórdicos, como Suécia e Noruega, alcançaram altos níveis de igualdade devido à distribuição igualitária de salários. Nesse contexto, a criação de empregos e oportunidades para trabalhadores com diferentes níveis de habilidade desempenha papel fundamental. O Brasil deveria seguir por esse caminho.

Na prática, o que Suécia e Noruega fizeram? Nesses países, os trabalhadores são muito qualificados, e isso passa pela educação. Além disso, as negociações salariais envolvem a participação ativa dos sindicatos, o que resulta em discrepâncias menores de remuneração entre as categorias profissionais.

De que forma a desigualdade de renda afeta o crescimento econômico dos países? A relação entre desigualdade de renda e crescimento econômico não é tão direta quanto se poderia pensar inicialmente. Embora seja comum pensar que uma alta desigualdade de renda leve a um crescimento econômico mais lento, a análise dos dados revela uma relação mais complexa.

O senhor poderia dar exemplos concretos? Manter um alto grau de igualdade, como ocorreu nos países do bloco soviético durante os anos 1970, pode ser ineficiente. No entanto, quando uma economia se torna excessivamente desigual, como China e Brasil em determinados momentos, isso afeta o desenvolvimento. Portanto, a relação entre desigualdade e crescimento econômico não é linear e varia de acordo com as circunstâncias específicas de cada país.

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Existe alguma correlação mais evidente? Sim, aquela entre desigualdade e democracia. A alta desigualdade tende a afetar a democracia de várias maneiras, o que pode ser prejudicial para a estabilidade política e social.

“No Brasil, a corrupção levou ao aumento do apoio a figuras políticas que não seriam sequer consideradas, como um presidente que expressou simpatia pela ditadura”

A corrupção sistêmica, como observada no Brasil em diversas ocasiões, não é um entrave para o desenvolvimento econômico? Ela tem impacto na eficiência das instituições, e isso se aplica não apenas ao Brasil, mas a muitos contextos ao redor do mundo. Minha própria pesquisa demonstra que tanto a desigualdade quanto a corrupção operam de maneira semelhante no sentido de minar o funcionamento da democracia. Em regimes democráticos que não conseguem abordar eficazmente questões de desigualdade, a confiança das pessoas na democracia tende a diminuir, tornando-as mais propensas a considerar alternativas autoritárias como soluções.

O senhor considera que a corrupção afetou a confiança na democracia brasileira? Sim. Esse fenômeno levou ao aumento do apoio a figuras políticas que, em circunstâncias normais, não seriam consideradas, como um presidente que expressou simpatia pela ditadura militar ou manifestou intenções autoritárias. Portanto, tanto a desigualdade quanto a corrupção representam ameaças ao funcionamento saudável da democracia e devem ser enfrentadas de forma decisiva.

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Existe alguma solução para diminuir ou evitar a corrupção? Não existe uma solução única para a corrupção, especialmente quando ela está presente em níveis elevados, desde o nível da Presidência até as instâncias mais baixas, como as municipalidades. A abordagem eficaz deve envolver uma série de medidas, incluindo o papel crucial da mídia na exposição de casos de corrupção, além de pesquisas que demonstrem como os eleitores punem políticos corruptos.

Qual seria o papel ideal das instituições nesse cenário? É importante contar com instituições independentes, como um sistema judiciário que atue de forma imparcial. No entanto, é fundamental evitar que o combate à corrupção seja utilizado como pretexto para perseguir adversários políticos, como ocorreu especialmente na China. Ao lidar com a corrupção, é preciso exercer cautela para não aprofundar ainda mais a polarização política e preservar a independência das instituições democráticas.

Como a integridade das instituições democráticas influencia o crescimento da economia? Esta é, sem dúvida, uma pergunta crucial. Acredito firmemente, com base nas ideias que desenvolvi em meu livro Por que as Nações Fracassam, que instituições inclusivas desempenham um papel crítico na promoção, a longo prazo, da prosperidade econômica. Atualmente, essa afirmação continua válida e é uma das razões pelas quais estou cético em relação ao potencial futuro da China, onde a democracia ainda está distante e a independência das instituições não melhorou significativamente desde o fim do regime de Mao Tsé-tung.

Mas alguns analistas afirmam que a China está se movendo em direção a uma economia mais aberta. Absolutamente não. Há várias razões para isso. O controle estatal sobre a economia aumentou significativamente com o Partido Comunista Chinês, que exerce um controle rigoroso sobre as empresas. Esse novo sistema provavelmente decepcionará em termos de crescimento econômico, o que já começamos a ver. Apesar da propaganda e do controle rígido, muitos cidadãos chineses agora anseiam por uma voz e representação, mas o sistema atual não oferece instituições inclusivas. Em resumo, a China parece estar se movendo em uma direção mais repressiva em comparação com uma década atrás.

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Qual é a relevância dos países que integram o Brics no novo cenário geopolítico global? Devo expressar minha profunda decepção em relação aos países do Brics, especialmente o Brasil. Fui um grande apoiador do presidente Lula, mas agora estou extremamente desapontado. A atual expansão do grupo me parece ir em direção equivocada aos interesses do bloco.

Onde está o equívoco? É evidente que estamos trilhando um caminho que coloca o Brics sob a influência da China, enquanto o mundo em desenvolvimento necessita de uma voz independente. Essa situação é lamentável. Para o Brasil, que parece concordar com essa mudança, é uma tristeza profunda. Trata-se de um retrocesso significativo.

O que o Brasil e outros emergentes deveriam fazer para enfrentar a crescente influência da China? O Brasil e outras economias emergentes têm papel crucial a desempenhar contra a supremacia não apenas da China, mas também dos Estados Unidos. Nações como Brasil, Turquia, Indonésia, Índia e Bangladesh precisam ter uma voz independente quando se trata de direcionar o rumo da tecnologia, inteligência artificial e os impactos do comércio global. Também é crucial abordar questões relacionadas à segurança alimentar e a outros grandes desafios globais.

O Brics não aborda essas questões? Os países do Brics parecem estar se tornando meros clientes dos chineses e russos. Acredito firmemente que o mundo precisa transcender a bipolaridade atual. Nesse contexto, o Brics deveria ser menos submisso aos interesses de China e Rússia.

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“A China levanta preocupações sérias, pois age de forma contrária à democracia. A repressão e a falta de liberdade no país são comparáveis a regimes fascistas do passado”

Por que a hegemonia de China e Estados Unidos o preocupa tanto? Tanto a China quanto os Estados Unidos exercem influência poderosa, mas apresentam problemas distintos. A desaceleração da economia chinesa tem implicações significativas em escala global. A China levanta preocupações sérias, pois age de forma contrária à democracia, reprimindo movimentos democráticos em diversas regiões e usando a tecnologia para o controle autoritário.

O modelo chinês pode ser comparado a alguma experiência do passado? A repressão e a falta de liberdade na China são comparáveis às de regimes fascistas do passado. Além disso, a China exporta tecnologias de vigilância, censura e monitoramento para pelo menos sessenta países, a maioria dos quais não é democrática, o que mina a sociedade civil e organizações semelhantes. Isso cria problemas significativos em todo o mundo.

Em relação aos Estados Unidos, o que seria mais alarmante? Por sua vez, os Estados Unidos também desempenham papel perigoso, já que sua abordagem tecnológica apresenta desafios substanciais. A tendência de empoderar corporações é motivo de preocupação.

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A escalada da inflação global tem causado sérios problemas para diversos países. Como o senhor vê o papel dos Bancos Centrais na gestão da inflação? As ações das autoridades monetárias serão um teste crucial para a estabilidade econômica. Por outro lado, é igualmente importante que essas instituições não adotem uma postura excessivamente restritiva em relação às taxas de juros, considerando que em muitos países, como nos Estados Unidos, as taxas reais têm se mantido estagnadas por um período. O equilíbrio certo deve ser alcançado para garantir que a inflação não saia de controle, ao mesmo tempo em que não iniba excessivamente o crescimento dos salários na economia.

A inflação global pode agravar a desigualdade socioeconômica? Em muitos países, os trabalhadores assalariados frequentemente não têm seus rendimentos vinculados à inflação, enquanto os mais ricos investem em ativos financeiros cujos valores podem não ser tão afetados. A política monetária tem consequências distributivas que costumam ser subestimadas.

Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864

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