Mandetta diz que pode concorrer em 2022 se houver consenso sobre seu nome
Em busca de uma terceira via, ex-ministro afirma que há elementos para processar Bolsonaro por crime contra a saúde pública e critica duramente Lula
O celular do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta se tornou um dos mais requisitados na República. Diariamente, o aparelho toca com dezenas de chamadas de emissoras de rádio e de televisão, nacionais e estrangeiras, em busca de comentários sobre os assombrosos números da pandemia no Brasil. Atrás do político do DEM também estão diversas lideranças que pretendem apresentar uma candidatura que rivalize com o bolsonarismo e o lulopetismo em 2022. Atualmente, Mandetta é um dos articuladores da chamada “terceira via” e, sem muitos rodeios, admite que poderá ser candidato à Presidência se houver convergência em torno de seu nome. Na entrevista a seguir, ele fala sobre os desafios para a construção de uma candidatura alternativa e competitiva, comenta a troca recente no comando do Ministério da Saúde (veja a reportagem na pág. 28) e não poupa o presidente como o responsável pela atual catástrofe sanitária.
No último dia 12, fez um ano da primeira morte por Covid-19 no Brasil. Hoje, o país já se aproxima de 300 000 óbitos. A tragédia poderia ter sido evitada? Tínhamos de ter lutado para que isso não ocorresse. Os militares sabem que devem estudar a força do inimigo quando entram numa guerra e que vitórias e derrotas são quantificadas a partir de quantos homens você perde. Eu estudei o vírus e fiz projeções para a realidade do nosso país, mas o presidente preferiu ouvir os palpiteiros. Com a transferência de doentes de Manaus, implantou-se agora uma nova cepa em todos os entes federados do país. Se o Brasil continuar errando, vai parir uma terceira e uma quarta cepas. Uma delas pode vir resistente às vacinas, e aí os números serão incalculáveis. Estamos jogando uma loteria biológica perversa. Para a frente, temos um ponto de interrogação. Para trás, o cheiro é de terra de cemitério.
Segundo algumas correntes, Bolsonaro deve ser processado por crimes contra a saúde pública. Concorda com isso? Em tese, a competência para investigar deveria ser do PGR, mas ele começou pelo Eduardo Pazuello, que era um ventríloquo do Bolsonaro. Falando em termos políticos, eu assisti a um impeachment na minha vida, que foi o de Dilma Rousseff. Hoje, os indícios de crimes contra a saúde pública são elementos muito mais consistentes do que uma irresponsabilidade fiscal, mas esse é um processo político.
O que deveria ser feito para conter os danos até 2022? Não sei se vai chegar ao ponto disso, mas uma possibilidade era fazer uma intervenção no Ministério da Saúde para cumprir uma agenda independente do governo. Os empresários têm de entender que o prejuízo econômico é responsabilidade de quem orientou o presidente a não fazer o enfrentamento da doença. É responsabilidade do presidente e do ministro da Economia. Países que já estão vacinando suas populações vão reabrir a economia com seis meses de dianteira em relação a nós. Se vier uma variante brasileira resistente a vacinas e que ponha em risco o esforço feito lá fora, o governo terá muitas dificuldades em nível mundial.
É possível recuperar o tempo perdido? Temos poucas vacinas e as cidades estão vacinando lentamente. Há um intervalo de trinta dias entre as duas doses da CoronaVac. Talvez esse novo ministro, o Marcelo Queiroga, ou algum governador poderão provocar a ciência questionando se não deveríamos vacinar todo mundo com até 60 anos de idade com uma dose só. Essas pessoas representam até 82% dos que estão entupindo os hospitais. Isso precisa ser pensado e decidido rápido, pois é uma discussão nacional. No mais, o presidente precisa parar de politizar tudo. A responsabilidade agora é de quem sentou na cadeira de ministro. Ele terá de decidir se vai ser um ministro da Saúde ou um ajudante de ordens do presidente.
“O PT tem chances reais de voltar ao poder? Não trabalho com pesadelos. Lula não pediu desculpas, não fez nada. Vamos ter de indenizá-lo também? Não existiu um cartel de empreiteiras?”
O senhor se arrepende de ter feito parte do governo Jair Bolsonaro? Fui para o ministério porque me foi prometido um trabalho 100% técnico e porque poucas pessoas naquele entorno tinham conhecimento sobre o SUS. Mas, quando chegou a pandemia, entre a vida e a morte, Bolsonaro optou pela morte.
O que achou da reviravolta jurídica que permitiu a Lula retornar ao cenário político antagonizando com Bolsonaro? O PT tem chances reais de voltar ao poder? Não trabalho com pesadelos. Lula não pediu desculpas, não fez nada. Vamos ter de indenizá-lo também? Quer dizer que não existiu um cartel de empreiteiras? Em 2018, o que estava em discussão era perdoar o PT, a cleptocracia e o circo de horrores que foi feito. Era basicamente um voto de caráter. Eu estava tão desiludido com a classe política que nem tentei a reeleição para a Câmara. Eu não quero pensar agora que vai ter Fernando Haddad ou Lula. Vou lutar para que isso não aconteça de novo.
Fala-se muito na chamada terceira via, uma candidatura de centro capaz de oferecer algo diferente. O senhor aceitaria representar esse movimento e disputar a Presidência em 2022? Sou brasileiro, tenho mais de 35 anos, estou em dia com minhas obrigações eleitorais e estou filiado a um partido político. Essas são hoje as condições colocadas na Constituição e na lei e que me permitem ser candidato à Presidência. O próximo passo é ter um sonho e uma ideia do que se pode fazer pelo país, o que eu também tenho. Além disso, é preciso saber que um sonho não se faz sozinho e ver ao lado de quem ele será realizado. Quando fiz campanha pelas Diretas Já, vi um palanque na Candelária onde estavam todas as forças políticas, menos os militares, que não sonhavam com eleições diretas. Sonhei com a democracia e recebi um colégio eleitoral. Depois, sonhei com Tancredo Neves e recebi o Sarney. Não é demais pensar que aquele país que sonhava junto, que se manifestava com um objetivo claro e que unia a todos, possa fazer isso novamente. Então vamos para esse sonho se me chamarem ou se acharem que meu nome é o certo. Mas não colocarei meu nome na frente de nada, porque esse sonho não é meu, e sim de toda a minha geração.
Em que se baseia esse projeto centrista que o senhor tenta construir? Está na hora de propor um pacto suprapartidário e ter pontos de convergência não porque as pessoas vão assinar um papel, mas porque elas acreditam nele. O primeiro item deve ser a valorização total da democracia, porque o tensionamento entre os extremos é tão grande que pode levar à perda do estado democrático de Direito. Depois, é a responsabilidade fiscal do Estado. Isso precisa ser a baliza das promessas de quem for fazer esse enfrentamento. São vinte anos de populismo. Lula e Bolsonaro defendem o gasto público com o mesmo fim. Temos de ser transparentes para falar que a crise, que já era histórica, será ainda mais dura para a nossa geração superar. Por fim, é preciso ter um compromisso com a agenda ambiental e não deixar passar a percepção de que a Lava-Jato não existiu.
O senhor entende que as políticas econômicas de Bolsonaro e Lula são iguais? Eles são siameses, mas com o sinal trocado. Eles fizeram picadinho da liga social brasileira. Hoje é negro contra branco, gay contra hétero, fazendeiro contra índio. É como se as agendas não fossem para o Brasil. Quando chegam à economia, eles propõem a mesma coisa. Cada um capitaliza para si, pensando nas próximas eleições, e não pensam nas próximas gerações. Está na hora de fazer uma ruptura com políticas de curto prazo populistas, porque foi isso que vimos nesses anos com a cooptação absoluta da democracia e do Congresso, que funciona com a lógica do “em troca do quê?”. Quero ver em prática o capitalismo com responsabilidade social do Estado.
Qual é o prazo-limite para alguém ser escolhido o líder desse projeto? Os prazos são dados pelo calendário eleitoral, mas essa decisão esdrúxula que recolocou o Lula na disputa deixou o quadro mais claro e acelerou o timing. Todos sabem agora que o PT não é aquele do Haddad, que põe cílio postiço e diz que é bom moço. O próximo passo é representar a voz de uma parcela enorme da sociedade que não vai nem com o Lula nem com o Bolsonaro. Há uma demanda e uma pressão da sociedade para que esse campo já esteja melhor identificado e tem uma força condutora que está levando para uma unidade. Só que ninguém pode se sentar à mesa dizendo que já é candidato. Todos têm de entrar desarmados.
Seu partido, o DEM, que tem até ministros no governo, encamparia uma candidatura contra Bolsonaro? O DEM é um reflexo da sociedade. A sociedade está fatiada, todos os partidos estão assim. Vai chegar uma hora em que todos os partidos terão pessoas que vão sair por se identificarem mais com o Lula ou com o Bolsonaro. É para isso que existe a janela partidária.
“Se o Brasil continuar errando, vai parir novas cepas. Estamos jogando uma loteria biológica perversa. Para a frente, temos um ponto de interrogação. Para trás, o cheiro é de terra de cemitério”
Há nomes na esquerda com quem é possível somar forças? Há pontos que são comuns com os governadores do Nordeste e com o Guilherme Boulos, do PSOL, por exemplo. Todos são defensores da democracia e estão antenados com o meio ambiente. Agora, quando chegam à responsabilidade fiscal, no papel que o Estado deve ter, começam a surgir diferenças muito assimétricas na visão dos dados e da sociedade. Eu sou um debatedor franco e que defende suas posições, sou respeitoso, mas existe uma distância importante entre isso e a unificação de pessoas com pensamentos diametralmente opostos sobre questões tão importantes.
Isso inviabiliza uma aliança com Ciro Gomes? Não sei. Observo o Ciro há muitos anos na vida pública. É um homem que defende suas opiniões com veemência, mas não sei se ele tem esse desprendimento para enxergar o todo que está no entorno. Não sei se ele tem o primeiro pré-requisito, que é se despir das suas certezas e vaidades pessoais. Estamos na expectativa para que ele sinalize algo nesse sentido.
O senhor convidou Luciano Huck para entrar no DEM. Por quê? Estamos numa sociedade plural. Outro dia veio o nome da Luiza Trajano, que não está filiada a um partido, mas que dá um show de colaboração como cidadã. Os partidos têm de abrir as portas. Apresentadores de televisão e jornalistas são parte da sociedade e têm uma visão muito privilegiada por estarem em veículos de comunicação. O momento de decidir participar da vida do Brasil é quando uma voz de foro íntimo chama. Se ele tiver esse chamado e vier para o DEM, ótimo. Mas, se for para outro partido dessa nossa força, farei campanha do mesmo jeito.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730