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Mario Vargas Llosa, sobre a pandemia: “O mundo sairá melhor”

O maior escritor vivo da América Latina e Nobel de literatura critica a China por atuação na crise da Covid-19 e elogia a Operação Lava-Jato

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 14h35 - Publicado em 6 nov 2020, 06h00
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  • O peruano Mario Vargas Llosa contabiliza dias produtivos de confinamento em Madri. Em sua residência na capital espanhola, o maior escritor latino-americano vivo e ganhador do Nobel de literatura em 2010 passa o dia devorando livros, trabalhando e refletindo sobre os rumos da humanidade. Aos 84 anos, Llosa acaba de lançar no Brasil a novela Tempos Ásperos (Companhia das Letras), na qual revive o golpe de Estado que derrubou um governo democraticamente eleito na Guatemala em 1954, com apoio dos Estados Unidos, para resguardar os interesses da exportadora de bananas United Fruit. Na entrevista a seguir, feita por videoconferência, o autor comenta por que o episódio deixou marcas profundas na América Latina. Um falante Llosa dá ainda suas opiniões sempre agudas sobre os excessos autoritários cometidos em nome do combate à pandemia em vários países, a ascensão da nova direita, as fake news e os males da arte contemporânea — além de fazer um elogio enfático à Operação Lava-Jato.

    Seu novo livro tem como cenário o golpe militar na Guatemala em 1954, com apoio dos Estados Unidos, para proteger interesses de uma exportadora de bananas. A América Latina ainda sofre do complexo da “República Bananeira”? Não vejo mais essa ameaça. Temos de lembrar que eram tempos da Guerra Fria, do macarthismo, de temor americano pelo modo como a União Soviética ganhava aliados em vários continentes. Hoje, os Estados Unidos são mais respeitosos com a América Latina, e inclusive têm interesse econômico no progresso da região. Os tempos mudaram.

    Por que então desenterrar um episódio que pertence ao passado de um país pequeno? O golpe na Guatemala teve efeitos cataclísmicos na América Latina, que nos anos seguintes viu uma sucessão de derrubadas de governos eleitos. E ajudou a radicalizar a Revolução Cubana. É também um episódio precursor do efeito desastroso das fake news na política. Muito antes da internet, a United Fruit moveu uma campanha na imprensa americana, ironicamente por meio de veículos liberais, que fez com que a opinião pública acreditasse, ingenuamente, em mentiras sobre a suposta influência comunista na Guatemala.

    Se no passado havia o fantasma comunista, hoje a preocupação é com a direita radical. Do Brasil à Hungria, o mundo assiste ao domínio de líderes populistas com rasgos autoritários. A que se deve essa escalada? Isso é reflexo da frustração com governos de esquerda que promoveram gestões populistas e corruptas. Essa realidade desanimou o eleitorado, que se viu forçado a votar no extremo oposto. O caso do Brasil é exemplar, porque os governos de Lula e do PT tiveram muita corrupção, o que desencantou os brasileiros e os fez eleger um governo bastante autoritário e confuso. Jair Bolsonaro nunca teria chegado ao poder se esse desencanto não tivesse acontecido.

    O fenômeno se estende a outros países? Isso tem acontecido em muitas nações da América Latina, ainda que por razões diversas. É o caso da Argentina: Macri gerou esperanças, mas, do ponto de vista econômico, seu governo foi um desastre. Os argentinos foram levados então a uma operação suicida: votaram de novo no peronismo, que vem causando um verdadeiro estrago por lá.

    Recentemente, o Peru viveu escândalos políticos em série por causa de desdobramentos da Operação Lava-Jato brasileira. Como analisa a crise em seu país? Essa empresa brasileira, a Odebrecht, merece um monumento na América Latina, de tantos governos que corrompeu e ajudou a derrubar. Cinco ex-presidentes do Peru foram presos ou atingidos, graças ao Brasil e à Operação Lava-Jato. E há reflexos na Colômbia, no México… É um sistema de corrupção generalizado. Jamais teremos democracia e políticos representativos se não combatermos a corrupção. O juiz Sergio Moro foi formidável, muito valente.

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    “No momento, a luta é contra a pandemia. Mas, cedo ou tarde, será preciso investigar qual papel a China desempenhou nesse contexto. Um dia as pessoas vão saber o que se passou em Wuhan”

    No Brasil, o ex-juiz Moro enfrenta oposição à esquerda, com o PT, e à direita, dos bolsonaristas. O que pensa disso? Quero dizer que Moro é um homem verdadeiramente independente. Deveríamos ter muitos juízes como ele na América Latina.

    Por que o senhor desistiu da política após concorrer à Presidência do Peru em 1990 e perder para Alberto Fujimori? Porque nunca tive aspiração política. Eu me vi empurrado a ser candidato por ter presidido um movimento contra a nacionalização dos bancos e companhias financeiras. Isso me empurrou a aceitar a candidatura, mas nunca quis ser nada mais que um escritor. Com os problemas que existem na América Latina, os escritores estão moralmente obrigados a intervir e a tratar de encontrar soluções. Mas os que não têm vocação não devem participar da política.

    Tanto políticos de esquerda quanto os de direita tiveram enormes dificuldades nas políticas públicas para lidar com a Covid-19. A pandemia do coronavírus veio para melhorar ou piorar os rumos da humanidade? A pandemia vai nos tornar menos arrogantes. Acreditávamos que havíamos dominado a natureza, e isso não é verdade. A natureza nos guardou uma grande surpresa: há mais de 1 milhão de mortos no mundo por causa de um vírus. Quando esse terrível capítulo se finalizar, vamos estar mais dispostos a investir em pesquisa científica e sistemas de saúde à altura, já que nenhum deles estava, em nenhum país.

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    Então o senhor é um otimista? Ora, pessimistas já estamos bastante, diante da montanha de mortos. A Espanha é um dos países em que o número de vítimas e de contágios é muito alto, e é um exemplo trágico do que não fazer para barrar a pandemia. Os países que souberam lidar melhor com o vírus são raros, e a princípio pareciam equivocados: é o caso da Suécia e da Suíça, que conduziram o combate ao coronavírus de forma mais sensata.

    Em artigo publicado em março, o senhor alertava contra o risco de o mundo retornar à Idade Média. Não era um exagero? Não é possível acertar nas medidas para conter a pandemia, mas sacrificar as liberdades públicas em nome delas. Vimos a adoção de um autoritarismo quase medieval por parte de alguns governantes, sob o pretexto de combater a doença. Transformar governos democráticos em autoritários não é o modo correto de lutar contra o vírus. Dentro da União Europeia, dois países que estão atuando assim em nível extremo são a Polônia e a Hungria. Pode ser que seus líderes tenham apoio popular, não nego, mas em ambos há excessos inaceitáveis.

    O senhor sempre foi um entusiasta da globalização. A pandemia vai provocar um retrocesso nela? É provável que sim, mas precisamos lutar para que isso não ocorra. A globalização tem sido muito importante, sobretudo para os países em desenvolvimento, como os da América Latina. Ela permite que se reduza o tempo do processo de sair da pobreza. Interrompê-la e voltar aos nacionalismos que ao longo da história somente trouxeram danos seria uma tragédia. Devemos combinar as políticas de contenção à pandemia com as de globalização, de forma a criar uma frente mundial contra o coronavírus na saúde e economia.

    O senhor já acusou o governo chinês de ser responsável pela explosão da pandemia. Mantém essa opinião? Um dia as pessoas vão saber o que se passou de verdade em Wuhan. Até agora, não se esclareceu como nasceu a doença. Tem algo de misterioso aí. A China não informou ao mundo e provavelmente essas informações reduziriam o impacto da doença. No momento, a luta é contra a pandemia. Mas, cedo ou tarde, será preciso investigar qual papel a China desempenhou nesse contexto.

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    Para um novelista, a pandemia seria uma boa inspiração? Há muitos romances excelentes sobre pestes. Tem uma famosa obra italiana do século XIX de que gosto muito, Os Noivos, que descreve uma terrível peste em Milão. A literatura sobre epidemias é rica, e seguramente a experiência dos últimos meses dará origem a novas obras que serão testemunhos valiosos do que estamos vivendo.

    Andam circulando uma série de fake news a respeito da pandemia. Como jornalista, de que forma o senhor analisa a explosão das mentiras nas redes e a influência delas na política? Sempre existiram mentiras no mundo da política, mas as redes sociais fizeram com que pela primeira vez elas pudessem ser uma ameaça real. É muito importante que haja liberdade de imprensa genuína, na qual jornais, revistas e programas de televisão responsáveis saiam na frente e denunciem as fake news. Se não reagirmos com vigor e rapidez, correremos o risco de as fake news vencerem a guerra contra os fatos.

    Outro fenômeno típico das redes sociais é o advento do cancelamento. Qual o perigo dessa onda? É um fenômeno que pode durar por muito tempo, caso nós não o enfrentemos a sério e a Justiça não atue com rigor. É através de um Judiciário independente que é possível denunciar e castigar os que destroem reputações e distorcem os fatos. O cancelamento, tal e qual as fake news, tem impacto nocivo na vida política das nações.

    “A Odebrecht merece um monumento na América Latina, de tantos governos que corrompeu e ajudou a derrubar. Cinco ex-presidentes do Peru foram presos ou atingidos”

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    Os ficcionistas podem auxiliar de alguma forma no combate a esses males? A literatura tem um papel crucial a cumprir. As mentiras que se apresentam como mentiras, as mentiras da literatura, não são perigosas, porque ninguém acredita que uma ficção seja verdade. Mas as mentiras da literatura podem trazer à luz grandes verdades reais. Pestes, pragas, guerras, violências políticas e ditaduras: a literatura já expôs tudo isso e também nos abrirá os olhos para esse mundo que, por meio da tecnologia, progride muito. Mas que, também por causa da tecnologia, apresenta novos perigos.

    Se por um lado o senhor elogia o papel da literatura da atualidade, por outro tornou-se um crítico ácido da arte contemporânea — já atacou, por exemplo, a famosa obra do inglês Damien Hirst do tubarão num tanque de formol. O que o incomoda tanto? Damien Hirst já disse que não é um pintor: contrata carpinteiros e pedreiros que fabricam as ideias que lhe ocorrem. O caso dele é o mais representativo da tragédia que vive a arte contemporânea. É impossível, hoje em dia, saber se algo é belo ou não, porque a arte justifica tudo. Pessoas como Damien Hirst são as grandes responsáveis pelo fato de gente sem destreza artística alcançar fama e riqueza. É triste ver exposições de pintura contemporânea, porque não há maneira de saber se um pintor é genuíno ou somente um delinquente que se vale de truques para vender gato por lebre.

    Aos 84 anos, o senhor continua ativo. Qual é o segredo? Gosto de viver. Sigo trabalhando e lendo muito. Estou aproveitando o isolamento para trabalhar. Quero viver até os 100 anos e morrer com a pena na mão.

    Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712

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