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“Não conseguiu dizer a que veio”, afirma Krenak sobre ministério criado por Lula

Escritor e ativista critica a inação do Estado diante de ataques a indígenas e confessa estar mais pessimista sobre o futuro do planeta

Por Victoria Bechara Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 ago 2024, 09h14 - Publicado em 9 ago 2024, 06h00
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  • Ambientalista, escritor e filósofo, Ailton Alves Lacerda Krenak, de 70 anos, virou imortal desde abril deste ano, quando se tornou o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras. Ativista pelos direitos dos habitantes originários, ele mostrou seu rosto ao grande público pela primeira vez ao pintá-lo com tinta de jenipapo em 1987, durante a Constituinte. No discurso, revelou que o gesto era para “expressar luto pelas insistentes agressões” a seu povo. Hoje, sua revolta é ainda maior, devido às tragédias recorrentes. No sábado 3, dez guarani-kaiowás foram feridos a tiros em um conflito por terra em Douradina (MS), episódio que se somou a outros recentes na Bahia e no Rio Grande do Sul. Apesar de Lula ter subido a rampa com o cacique Raoni e ter colocado duas indígenas para chefiar uma pasta específica e a Funai, Krenak está descontente com o governo. “Não conseguiu dizer a que veio”, afirma sobre o Ministério dos Povos Indígenas. Além da violência, nesta entrevista a VEJA, ele critica a dificuldade para combater o garimpo e a lentidão na demarcação de terras. Suas críticas também vão para a realização da COP30, a conferência ambiental da ONU, em 2025 no Brasil.

    Como o senhor avalia o trabalho do Ministério dos Povos Indígenas? Até agora não conseguiu dizer a que veio.

    Por quê? Porque não tirou os garimpeiros da Terra Yanomami, não parou a matança dos guarani-kaiowás, não cessou a violência contra os pataxós no sul da Bahia, não consegue enquadrar esses fazendeiros que estão montando milícia para atacar as aldeias. É um ministério, então deveria ter um confronto mais explícito entre o sistema formal da República e os bandidos que estão atuando livremente, armados, convocando carreatas. Não dá para ver que as caminhonetes têm armas? Vamos deixar milícias se organizarem no país debaixo do nariz das autoridades? Vejo a dificuldade que o governo está tendo para fazer o Ministério funcionar como um ministério, não como um gabinete paralelo.

    O pano de fundo é a questão da terra. O que acha de o STF ter iniciado na última semana uma tentativa de conciliação sobre o marco temporal? Essa ideia de mesa de negociação é mais uma manobra na novela do marco temporal, que já foi declarado inconstitucional pelo Supremo. É uma movimentação ilusória. O que o ministro Gilmar Mendes está fazendo é enrolação, está empurrando com a barriga. É uma tristeza que tenhamos chegado ao ponto de Executivo e Judiciário ficarem batendo bola, enquanto o Legislativo avança na criação de um ambiente propício ao genocídio. O nosso sistema legal não consegue inibir essa violência. Isso é muito grave. O marco temporal é pretexto para uma voragem, uma violência que subsiste mesmo após um governo (Lula) ter sucedido ao outro (Bolsonaro).

    Faltou articulação do governo Lula para barrar a aprovação do marco temporal no Congresso? Eu não sei se isso tem a ver com articulação de governo. Isso tem a ver com governança no sentido geral. E não diz respeito só ao Executivo, diz respeito também ao Congresso, ao Judiciário. Os poderes da República estão trocando tiros entre si ou trançando as pernas, feito bêbados. Nós estamos em um Estado desgovernado.

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    Além dessa questão da violência, quais são as demandas mais urgentes? Tem uma expressão que o povo indígena repete de norte a sul que é: “A terra é a mãe de todas as lutas”. A terra não é mercadoria, mas faz muito tempo que o Estado brasileiro não consegue dizer o que a terra é. Nunca teve reforma agrária, não tem demarcação de área legítima, vivemos um assalto repetido às fronteiras agrícolas — a da vez agora é a Amazônia. As terras públicas estão sendo apropriadas por empresas e sujeitos espertos. Isso é tão escrachado, tão repetidamente discutido, que chega a cansar a inteligência repetir essa conversa. Parece que nós somos idiotas, né?

    “Ver os guarani-kaiowás fazerem um velório à beira de uma rodovia, em cima de um cavalete, é uma coisa horrorosa. Parece filme de terror. Vamos esperar o que para mudar tudo?”

    E quem seriam os culpados? Eu não acredito nesse negócio de culpa. Culpa tem a ver com religião, não com a política. A gente pode falar de responsabilidade. A responsabilidade é de uma sucessão de governos, todos controlados por oligarquias e pelo capital. Ter a esperteza e a grana como fundamentos em uma sociedade só pode reproduzir violência e desordem. A gente viveu um período tão miserável da vida política que ainda não conseguimos estancar toda a consequência daquela verborragia, das besteiras que ministros diziam. Se uma pessoa ocupa um cargo na estrutura do Estado e anuncia que vai “passar a boiada”, ela incentiva a violência e a invasão de patrimônio da União. E ela continua por aí com cargo de deputado, o que significa que somos tolerantes com esse tipo de abuso. Ver os guarani-kaiowás fazerem um velório à beira de uma rodovia, em cima de um cavalete, é uma coisa horrorosa. Parece filme de terror. Vamos esperar o quê? Um desastre monumental para ver que precisamos mudar tudo?

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    A Terra Indígena Yanomami é palco de uma crise sem precedentes por conta do garimpo ilegal. É possível vencer essa guerra, como prometeu o presidente Lula? O garimpo, dentro ou fora de terra indígena, está causando uma desordem ambiental irreparável, envenenando as águas com mercúrio, drogando o solo. Daqui a pouco as pessoas não vão poder cultivar porque a terra estará doente. A ideia de regularizar a atividade da mineração, que é muito polêmica, tem sido considerada uma das maneiras de acionar o sistema capitalista na defesa do que interessa a eles, que é o lucro, o controle. Mas o garimpo não dá lucro para o sistema todo. O garimpo é uma sangria. É uma questão social grave. O Estado não está equipado para confrontar essa invasão e não tem consenso dentro do governo sobre o que fazer com o garimpeiro. Tem gente que fala em reaproveitar esses milhares de pessoas, colocando-as numa atividade regulamentada. Essa é uma medida que exige muita competência do Estado. E tem que ter muita boa vontade para resolver.

    Dá para conciliar preservação ambiental e desenvolvimento econômico? Se o desenvolvimento econômico passar por regulamentações, pode ser possível. Mas não dá para chamar urubu de meu louro. Não dá para ter a invasão garimpeira, a contaminação com mercúrio e a bioeconomia no mesmo lugar. Tem que tirar o garimpo para depois ter, por exemplo, uma atividade de mineração que possa ser fiscalizada, controlada e analisada. Eu vivo às margens do Rio Doce, em Minas Gerais. Nos últimos oito anos, fomos privados do acesso ao rio pela atividade mineradora. As tragédias de Mariana e Brumadinho devastaram bacias hidrográficas. Quer dizer, mesmo a mineração com status de empresa organizada deixa rastros.

    A Amazônia brasileira vai sediar a COP30, em Belém, em 2025. Qual imagem iremos transmitir ao mundo? Acho que vamos mostrar uma imagem eufórica, cheia de expectativas e promessas de futuro, assim como ocorre na Olimpíada. Só que, quando terminar, ninguém vai ter coragem de beber a água do Rio Sena.

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    O senhor assumiu uma cadeira na Academia Brasileira de Letras neste ano. O que tem feito desde então? Eu vou fazer uma piada. As pessoas que vão para a ABL são simbolicamente consideradas imortais, não é isso? Então, eu tenho a eternidade toda para fazer alguma coisa (risos). Três meses é muito pouco. Eu prometi que levaria as línguas indígenas para a Academia. Os países de língua portuguesa no mundo têm o mesmo propósito, que é o de projetar a língua de Camões para além dos lugares que ela já alcançou. Tudo bem, mas aqui, neste país colonizado, existem 305 outras línguas. Eles querem promover a lusofonia, e a gente quer uma sinfonia. Uma sinfonia de línguas. Estou trabalhando para isso, em uma plataforma onde os falantes de idiomas indígenas possam, usando um celular, gravar mensagens sonoras, textos, vídeos, imagens, conteúdos. Estou chamando a plataforma de “língua-mãe”. Essa experiência já está sendo implementada junto com o Museu da Pessoa, que está oferecendo uma colaboração muito bacana, a de abrigar na plataforma já existente todo o acervo indígena. Eu acho que para o Brasil poder ostentar essa diversidade linguística, da mesma forma que ostenta a biodiversidade da floresta, nós todos temos que cooperar. De monocultura já basta a soja. A gente não precisa de monocultura de língua.

    “Vamos mostrar na COP uma imagem eufórica, cheia de expectativas e promessas de futuro, assim como em Paris. Só que, quando terminar, ninguém vai ter coragem de beber a água do Sena”

    O senhor fez um discurso histórico na Assembleia Constituinte. De lá para cá, a sua percepção em relação ao futuro do planeta e da sociedade mudou? O mundo continua sendo o mesmo e velho mundo, com muita guerra, muita disputa, muita predação e com a novidade das mudanças climáticas, que não deixam ninguém de fora. Assim como a globalização é um fenômeno econômico, as mudanças climáticas são um acontecimento sistêmico, planetário. Nós estamos dentro dele e ninguém escapa, nem rico, nem pobre. Estamos todos diante de uma possibilidade real de os humanos passarem por uma experiência dramática. Ou então passarem a viver em condições tão miseráveis que o abismo entre quem tem e quem não tem pode ser intransponível. Podemos chegar a uma situação em que todas as nossas ideias de conciliar a diversidade dos povos deixem de ser um programa e a gente tenha que se voltar para administrar conflitos, guerras e o abismo social. Aquela coisa de o Trump querer fechar os Estados Unidos ao resto do mundo é um anúncio disso. A Europa também quer que os imigrantes se danem. Já temos quase 1 bilhão de pessoas zanzando pelo planeta na condição de refugiados. Refugiados climáticos, exilados políticos, fugitivos da pobreza, todo tipo de miséria.

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    Pesquisa Datafolha mostrou que quase toda a população percebe mudanças climáticas no cotidiano, mas os brasileiros são mais pessimistas do que otimistas sobre uma melhora. Onde o senhor se encaixa? Eu estou com a maioria. Imagine se entra uma bactéria estranha no seu organismo. Se o seu organismo estiver saudável, o que ele vai fazer com a bactéria? Expulsá-la. O organismo saudável do planeta vai expulsar o Homo sapiens daqui, vai esmagar os humanos. Só que não de uma vez, nem na sua totalidade. A humanidade vai adoecer, ser atacada por pandemias, sofrer desestruturação socioambiental, perder as experiências sociais que construiu até hoje. Essa sociabilidade precária que a gente tem vai erodir, vai se esvaziar, porque as pessoas vão perdendo a confiança no mundo que pode vir depois dessa experiência das mudanças climáticas e da desestruturação dos governos. É um cenário meio apavorante. Mas onde buscar uma luz, um raio de sol e esperança, quando a verdade é tão brutal?

    Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905

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