“Não há paz com Trump”, diz Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI
Segundo o professor de Harvard, ceder não é a melhor estratégia diante das tarifas e interferências políticas do presidente americano
Se um governante quiser sobreviver no tabuleiro de uma ordem global bagunçada pelos lances erráticos de um jogador muito mais forte, pode ser uma boa ideia pedir conselhos a Kenneth Rogoff, de 72 anos, professor de economia da Universidade Harvard, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-conselheiro do Fed, o banco central americano — e que, além de tudo isso, é um grande mestre do xadrez, tendo enfrentado campeões mundiais como Mikhail Tal e Magnus Carlsen. Rogoff nunca foi otimista com as perspectivas da economia em um segundo mandato de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Ele descreve o republicano como um valentão e considera que a melhor maneira de lidar com ele é com ataques frontais, “como um soco no nariz”. O economista prevê que o mundo caminha para um novo choque financeiro nos próximos cinco anos e que o dólar vai continuar perdendo força e relevância, tema que ele explora em seu novo livro, Our Dollar, Your Problem (“Nosso dólar, seu problema”), lançado neste ano nos Estados Unidos. “Trump está acelerando o declínio da moeda”, disse Rogoff a VEJA. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
A tentativa de Donald Trump de interferir na política e em decisões judiciais brasileiras deve ser motivo de preocupação? É um tipo de enfrentamento, mas não acho que isso deva ser visto como representando o sentimento do povo americano. O Brasil é muito mais capaz de julgar seus próprios problemas e questões do que Trump. Não vejo por que deveríamos dar tanta importância ao que ele pensa. Melhor seria focar no que o povo e os líderes políticos brasileiros pensam. Mas ele faz isso com todos. O mundo vai aprender que, se ceder a Trump, ele só vai pedir mais. Não há paz possível com ele.
Se pudesse, que conselho daria a Lula para enfrentar Trump? Com Trump, a luta deve ser direta, como dar um soco no nariz dele. Se você recuar, ele vai querer mais. Ele quer usar as tarifas como instrumento de poder pessoal. Enquanto os países permitirem isso, não vai parar. A guerra tarifária diz menos respeito a economia e mais a controle político. Acredito que Lula deve manter uma postura firme diante de Trump. Não há nada a ganhar ao ceder, porque, se você faz uma concessão a um valentão, ele só vai intensificar as pressões.
E que conselho daria a Trump em relação ao Brasil? O ideal seria manter um diálogo saudável, com respeito mútuo às opiniões e às diferenças. Se Trump acredita que pode prescindir do Brasil, ele está profundamente enganado. Nada seria pior do que afastar o Brasil e empurrá-lo para uma aliança mais próxima com a China. E, francamente, acho que ele também não gostaria de ver o Brasil se aproximando demais da Europa. Trump precisa parar de tratar os aliados como se fossem inimigos.
“Com Trump, a luta deve ser direta, como dar um soco no nariz dele. Se você recuar, ele vai querer mais. Ele não vai parar. Não há paz possível com ele”
Qual deve ser o impacto das tarifas americanas sobre as exportações do Brasil? A economia brasileira é relativamente fechada: as exportações para os Estados Unidos correspondem a cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB). O mercado americano responde por apenas 12% do total exportado pelo Brasil, e metade desse montante, inclusive, ficou isenta das tarifas. Além disso, alimentos e minerais brasileiros têm ampla demanda em outros mercados.
Ou seja, o impacto será limitado? Sim, certamente. O Brasil não está nem perto de ser tão vulnerável quanto México ou Canadá. Normalmente, eu diria que o fato de o Brasil ser tão fechado é um problema, com muitas tarifas e pouca abertura comercial. Mas, no contexto do confronto com Trump, isso se torna uma vantagem, pois ele não consegue causar tanto dano ao país.
O governo Lula tenta estimular o crescimento econômico com gastos públicos elevados. Ainda assim, o país cresce de forma lenta. Por quê? A economia brasileira tem sido mais resiliente do que eu imaginava. Parte disso é porque ela caiu bastante antes, então está se recuperando. Mas, mesmo que a economia não tenha colapsado, tampouco cresce de forma impressionante. Não é bom ter uma política fiscal sem ancoragem como a de Lula. Isso pode até fornecer algum estímulo no curto prazo, mas não garante estabilidade por um período mais longo.
O FMI prevê que a economia dos Estados Unidos vai crescer 1,9% neste ano e 2% em 2026. Esses números parecem otimistas demais para o senhor? Sim. Os dados mais recentes do mercado de trabalho mostram que os efeitos das tarifas estão apenas começando a se manifestar. O risco de uma desaceleração mais acentuada é alto. Acredito que o crescimento dos Estados Unidos em 2025 será mais próximo de 1,5% e, em 2026, algo em torno de 1%, abaixo do que projeta o FMI. Tudo aquilo que os economistas vinham prevendo, e não se concretizou nos primeiros seis meses do ano, vai começar a acontecer no segundo semestre.
A independência do Fed está ameaçada com Trump? Sim. Trump representa um risco para o sistema monetário porque mina o Estado de Direito nos Estados Unidos. Há uma tendência a concentrar o poder no Executivo, aumentando a vulnerabilidade a decisões arbitrárias. Se os direitos no país dependem do favor de uma única autoridade, sua segurança jurídica diminui e ele fica mais parecido com a realidade de uma economia em desenvolvimento, algo perigoso para a confiança global.
A dívida pública dos Estados Unidos está em níveis insustentáveis? O ponto de maior vulnerabilidade dos Estados Unidos será quando ocorrer outro grande choque econômico. Na crise financeira de 2008 e na pandemia, os Estados Unidos se endividaram mais em proporção à sua renda do que qualquer outro país. Após a crise financeira, tomamos empréstimos equivalentes a 30% do PIB. Depois da pandemia, mais 15% a 20% do PIB. A dívida chegou a um ponto em que precisa ser contida. Mas não há vontade política — nem entre republicanos nem entre democratas — para fazer isso.
O próximo choque financeiro está perto? Estamos muito mais vulneráveis. O mais provável é que a próxima crise envolva inflação, mas também pode haver taxação de investidores estrangeiros, ou imposição de investimentos forçados por fundos de pensão, seguradoras, bancos — o que chamamos de repressão financeira, com controle da curva de juros, entre outras medidas. Todas essas alternativas desaceleram o crescimento. O risco de uma crise significativa da dívida nos Estados Unidos, seja por meio de inflação, repressão financeira ou outro mecanismo, é superior a 50%. Em outras palavras, é mais provável que ocorra do que não, nos próximos cinco anos.
“O risco de uma crise da dívida nos EUA, seja por meio de inflação, repressão financeira ou outro mecanismo, é superior a 50%. É provável que ocorra nos próximos cinco anos”
Os Estados Unidos vão deixar de ser um porto seguro para investidores? Basta observar algumas das propostas que Trump já colocou sobre a mesa. Uma delas é o chamado “acordo de Mar-a-Lago”, que sugere um calote parcial da dívida americana com credores oficiais estrangeiros. Naquele projeto havia uma cláusula, retirada no último minuto, que daria ao presidente o poder de cobrar impostos sobre investidores estrangeiros de qualquer país. Ele poderia aplicar essa medida contra o Brasil. Essas ideias não desapareceram. Trump pode tentar outras alternativas para lidar com a dívida. Mas, se falharem, ele estará disposto a recorrer a políticas heterodoxas. Esse cenário será o mesmo para os próximos presidentes.
Existe alguma bolha financeira que lhe pareça particularmente preocupante? Bom, não sei se eu usaria a palavra “preocupante”, mas toda nova tecnologia costuma gerar bolhas, e elas estouram. Grandes invenções como a inteligência artificial passam por ciclos assim. Talvez ela não avance tão rápido quanto acreditam os entusiastas mais fervorosos. Uma das razões para as ações estarem tão valorizadas é que as empresas acham que vão precisar de menos trabalhadores. Assim, parte dessa alta nos preços das ações não reflete crescimento, mas sim lucros maiores obtidos às custas do trabalho humano. Isso, politicamente, vai ser bastante impopular.
O senhor prevê um período de forte volatilidade financeira? Dá para prever com segurança um período de forte volatilidade financeira. É difícil dizer para onde tudo isso vai, mas com certeza, se houver uma recessão nos Estados Unidos, o mercado de ações vai despencar. Hoje, os preços das ações refletem a expectativa de que não haverá nenhuma grande recessão, de que tudo vai correr bem. Por isso, existe, sim, a possibilidade real de uma queda de 30% no mercado acionário.
Em seu novo livro, o senhor afirma que o dólar começou a enfraquecer em 2015. Por quê? Uma forma de medir a influência global de uma moeda é observar quantos bancos centrais a usam como âncora para as suas próprias moedas. Quando a influência é forte, esses países tendem a estabilizar suas moedas em relação ao dólar. Isso começou a mudar em 2015, quando a China flexibilizou seu regime cambial. Como a Ásia, especialmente o Leste Asiático, representa metade das reservas mundiais em dólar, essa mudança na China impactou toda a região, que passou a dar menos peso ao dólar.
O declínio do dólar é lento? Ninguém vai substituir o dólar imediatamente, mas sua participação está claramente caindo. Hoje, a moeda americana responde por cerca de 60% das reservas (no mundo), mas eu estimo que isso possa cair para 40% ou 45% nos próximos dez anos. Talvez essa porcentagem fique ainda menor, dependendo dos rumos da economia global.
Por que isso está acontecendo? Os Estados Unidos têm usado sua posição de emissor da moeda de reserva para aplicar sanções financeiras e fazer guerra econômica. Isso preocupa profundamente a China, por exemplo. Em algum momento, o país pode tentar retomar Taiwan e sabe que, quando isso acontecer, os Estados Unidos vão impor sanções severas. Os europeus também não gostam de ser pressionados. Então, mesmo que o uso do dólar seja o mais eficiente do ponto de vista técnico, a forma agressiva de os Estados Unidos exercerem seu poder leva outros países a buscar alternativas, e isso torna insustentável esse “equilíbrio dominante” no longo prazo.
Trump está acelerando esse processo? Sim, ele intensifica uma tendência que já vinha desde 2015: o desconforto com o poder excessivo dos Estados Unidos. As sanções financeiras, as políticas protecionistas e o uso agressivo de informações financeiras globais geram desconfiança.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961







