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“O livre-arbítrio é um mito”, diz Robert Sapolsky, neurocientista de Stanford

O polêmico pesquisador defende em um best-seller que as escolhas que fazemos no dia a dia são determinadas por fatores genéticos e ambientais

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 abr 2025, 12h54 - Publicado em 4 abr 2025, 06h00

Um dos mais polêmicos figurões da academia americana, Robert Sapolsky, 67 anos, tem um olhar todo próprio sobre a neurociência, área em que é ph.D. e ensina na prestigiada Universidade Stanford, na Califórnia. Há mais de três décadas, ele vem examinando o cérebro para decifrar assuntos que causam aflição à espécie humana, como o estresse e, mais recentemente, as engrenagens por trás da tomada de decisões — tema que atiça a curiosidade científica e ao qual ele dá uma roupagem única. Com base em vastos estudos, o especialista que cultiva uma farta barba branca diz que a escolha dos indivíduos está quase que inteiramente dada por fatores genéticos e ambientais. É esse o combustível de seu recém-lançado Determinados: a Ciência da Vida sem Livre-Arbítrio (Companhia das Letras), best-seller nos Estados Unidos. De sua casa vizinha a Stanford, ele falou a VEJA.

Em tempos de maior complexidade e turbulências, como o que estamos vivendo, é mais difícil para os indivíduos tomar decisões? Sem dúvida. Existem momentos históricos em que a irracionalidade, uma marca humana, se pronuncia em graus especialmente elevados. É o que estamos observando agora. Isso tem a ver com a presença de guerras, com as incertezas acirradas e com as rachaduras de sociedades polarizadas. Um ambiente inflamado pelo ódio, circunscrito a uma lógica do “nós contra eles”, gera medo e desencadeia um ciclo vicioso que atrapalha a tomada de decisões — uma ebulição que tem o cérebro como cenário.

Em que medida a neurociência ajuda a explicar a irracionalidade? As pessoas ficam mais estressadas em eras tomadas por agitação, o que, do ponto de vista individual, libera hormônios que ativam estruturas no cérebro relacionadas às emoções, perturbando a função reflexiva do córtex frontal, que nos faz pensar antes de agir. Daí a propensão a comportamentos mais impulsivos, com tendência, inclusive, à radicalização e ao extremismo.

Por que suas conclusões sobre o processo humano de tomada de decisões são objeto de tanta polêmica nos círculos acadêmicos? Durante décadas, à luz da ciência, constatei que as pessoas alimentam a ilusão do poder de escolha, quando, na verdade, o livre-arbítrio é um mito. Isso quer dizer que os indivíduos estão quase 100% programados a optar por esse ou aquele caminho nos vários escaninhos da vida. As decisões das pessoas são definidas por uma soma da genética com o ambiente que as cerca e as experiências que têm — estas, também, modeladoras do DNA. Tudo está praticamente escrito em nós, uma ideia que colide com várias correntes de pensamento.

“Existem momentos históricos em que a irracionalidade, uma marca humana, se pronuncia em graus mais elevados. É o que estamos observando agora”

Qual o espaço, afinal, para o indivíduo se aprimorar e arbitrar de forma mais sábia? As pessoas podem amadurecer, recorrer à psicanálise de Freud e evoluir em áreas diversas. O cérebro é maleável e se transforma em resposta às experiências. Agora, há limites aí. A psicanálise fornece novas perspectivas que fazem sacudir padrões de pensamento e comportamento. Mas a maneira como circunstâncias alheias à nossa vontade nos marcam, do ponto de vista biológico, seguirá determinante para as decisões que tomamos. Tenho, porém, uma visão otimista: podemos mudar o suficiente para que a vida seja mais bem vivida.

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Em outros termos, temos pouco controle sobre nossas escolhas? Isso. Claro que uma porção importante do cérebro ajuda a pensarmos antes de tomar uma decisão. Como ela só se desenvolve por completo na idade adulta, os adolescentes são, em geral, mais impulsivos. Só que mesmo essa área ligada à razão é afetada por um conjunto de eventos tatuado no cérebro, o que torna a maior parte das escolhas que fazemos quase inescapável.

O senhor já afirmou que a crença da espécie humana de que tem elevado comando sobre os rumos de sua existência — e de suas decisões — é uma ferramenta evolutiva. Pode explicar melhor? Os humanos possuem uma série de mecanismos que os permitem negar a realidade, a fim de viver melhor. Todo mundo sabe que a morte é inexorável, mas seria doloroso demais passar 24 horas às voltas com essa ideia. Esquecer é uma ferramenta de sobrevivência.

Até que ponto a razão influencia o comportamento das pessoas? A ideia da racionalidade da espécie é outro mito. Os indivíduos têm a impressão de que é a mente que os move para certa direção, mas as emoções têm peso equivalente. Um estudo que fiz na arena da política, sobre eleições, comprova, a partir da neurociência, que o voto não se define pelas ideias de um candidato. Decisivo mesmo são os sentimentos que provoca e quanto eles têm eco nos medos e ansiedades de cada um.

Decisões de cunho político são também predeterminadas, ou estão mais sujeitas às circunstâncias? Elas entram no rol das outras, sob a mesma lógica. Veja o presidente americano Donald Trump, o mais controverso líder da atualidade. Diria que é um caso exemplar de como a combinação de genética e ambiente produz um humano capaz de ações pouco empáticas. O pai era um vigarista imobiliário e a mãe, um freezer no campo do carinho e do cuidado. Ele passou toda a vida sem saber se pessoas ao seu redor o amavam ou se só estavam ali por dinheiro. Não dá para esperar algo muito diferente do que estamos assistindo.

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Visão tão determinista não o aflige? Sim, é claro que me atormenta. Entender cientificamente as raízes dos equívocos humanos não significa que eles não causem repulsa.

Revisitando um caso extremo, como o de Adolf Hitler, que exterminou milhões de pessoas na Segunda Guerra, dá para afirmar que o mal também é predeterminado pela biologia? Não existe algo como um “gene do mal” que o predestinasse a cometer genocídio. O DNA diz respeito a potenciais, não a inevitabilidades. O ambiente em que Hitler estava imerso teve papel crucial em sua sombria trajetória, o que inclui uma infância complicada, o trauma da Primeira Guerra, a crise econômica, a ascensão do nacionalismo — tudo isso alterou seu funcionamento, exacerbando o que pode ser lido como uma propensão à maldade.

Pode explicar melhor, sob o ângulo da biologia, como o ambiente impacta as escolhas que fazemos? Cientistas odeiam falar o que vou dizer aqui: não há exatamente como saber. Mas existem indícios interessantes. Já foi descoberta, por exemplo, uma variante genética relacionada à serotonina, o chamado hormônio da felicidade, que supostamente prevê níveis de agressividade. Curioso é que ela só é ativada em um único cenário — aquele em que o indivíduo foi criado em um contexto abusivo. Genética e ambiente caminham sempre juntos, delineando quem somos e como agimos.

Essa ideia de que as pessoas são tão programadas não faz o humano se assemelhar demais a uma máquina? Somos máquinas biológicas, sim. A diferença para a inteligência artificial é que humanos se revelam mais multifacetados, tendo a consciência de quais são nossos botões e onde estão. É um sistema sofisticado, mas não chega a dar para se gabar, não. As mesmas enzimas cinases que acendem receptores quando aprendemos algo estão presentes nos cérebros de lesmas-marinhas.

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Se praticamente tudo já está escrito, por que é tão difícil prever o amanhã? Até sistemas caóticos são determinísticos, pois seguem regras fixas, mas mesmo eles exibem uma sensível dependência das condições iniciais. E é exatamente nesse ponto que uma minúscula variação pode ter vasto impacto com o passar do tempo, conduzindo a resultados imprevisíveis, drasticamente diferentes do esperado. Veja o caso dos gêmeos. Compartilhando de tão semelhante composição genética, mesmo os univitelinos nunca se tornarão pessoas idênticas nem parecidas no modo de ser, agir e decidir.

“Somos máquinas biológicas. A diferença para a IA é que nos revelamos multifacetados, tendo a consciência de quais são nossos botões e onde estão eles”

O que constatou em seus estudos sobre gêmeos? Está claro que, desde o nível celular mais primitivo, notam-se distinções entre eles que só se aprofundam ao longo do tempo. Cada um terá sua trajetória e sofrerá influências de suas próprias experiências — algo que os marcará de modo decisivo. A questão é que nada disso é visível, daí ser impossível traçar cenários com precisão matemática. O que dá para depreender são tendências.

Compreender a tomada de decisões tal como o senhor define traz algum benefício? Acho que, a partir do momento em que entendemos as escolhas de cada um como uma expressão de sua natureza, há mais empatia e menos julgamento. O ódio é uma face sombria da espécie e deveria ser expurgado. Quem sabe a compreensão de que os indivíduos são diversos por definição, desde o princípio da vida, não contribui para um ambiente de maior tolerância, algo de que tanto necessitamos nos dias de hoje.

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Como lidar com criminosos dentro dessa lógica determinista, segundo a qual eles estariam “programados” para infringir a lei? Claro que precisa haver punição, mas o modelo em vigor em países como os Estados Unidos, onde trabalho junto a defensores públicos, deveria ser repensado à luz desses estudos. Não é para atenuar a transgressão praticada pelo bandido, mas entender que ele só vai evoluir quando exposto a um ambiente de convívio com os outros, capaz de estimular mudanças positivas. Na Noruega, por exemplo, as prisões são guiadas pelo foco na reabilitação, à base de muita atividade e educação. É verdade que o investimento nessa direção é alto, mas há registros de queda nas taxas de homicídio e na reincidência de crimes variados. Tudo indica que vale a pena.

O determinismo também se aplica ao amor? Os poetas que me perdoem, mas existe toda uma estrutura regida pela biologia que faz com que um indivíduo se apaixone pelo outro. A escolha por um parceiro também tem a ver com genética — até o cheiro de cada um influencia no acasalamento — e com o ambiente. Viver em um contexto parecido funciona como potente fator de aproximação.

Às vezes, parece que o senhor acredita em destino. É isso mesmo? De nenhuma forma. O determinismo científico a que me refiro é diferente do predeterminismo protestante do século XVII. Este é fatalista e diz respeito à ideia de previsão do que vai acontecer, portanto ao destino. Mesmo com as limitações humanas, nós, cientistas, não achamos que o futuro seja imutável. Temos que aprender a tirar o melhor proveito das circunstâncias.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938

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