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‘Os cientistas precisam aprender a falar a língua do público’, diz Richard Roberts

Prêmio Nobel, o biólogo britânico conta como chegou às descobertas que abriram caminho a uma nova era na genética e os desafios da onda negacionista

Por Diogo Sponchiato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 14 fev 2025, 12h02 - Publicado em 14 fev 2025, 06h00

Mesmo estando na seleta lista das 229 mentes brilhantes que ostentam um Nobel de Medicina, desde a primeira láurea concedida em 1901, o britânico Richard Roberts, ganhador da distinção em 1993, prefere não ser chamado de professor. O cientista, na ativa aos 81 anos, dividiu a premiação com o americano Philip Sharp por ter descoberto um fenômeno crucial nos bastidores genéticos da vida: uma espécie de autoedição que permite converter as instruções do DNA em RNA e, logo depois, nas proteínas que materializam o organismo. Se a sigla do RNA, essa molécula crítica para a leitura do genoma, está em alta hoje, dando origem a vacinas que nos salvaram de uma pandemia e a outros achados potencialmente revolucionários, a história passa inevitavelmente pelos experimentos de Roberts. O pesquisador se tornou uma das maiores vozes a defender a ciência, sobretudo em momentos de negacionismo e mudanças de prioridade, como a nova administração de Donald Trump. De seu laboratório em Massachusetts, nos EUA, onde segue trabalhando para decifrar os mistérios dos genes, ele concedeu entrevista a VEJA.

Os últimos dois prêmios Nobel celebraram conquistas ligadas ao RNA, e, além da vacina da covid-19, agora ele é explorado para diversas terapias. De onde veio essa guinada? Estamos aprendendo lentamente que o RNA exerce muito mais funções em uma célula do que pensávamos originalmente. Com a descoberta do DNA, passamos a entender que a informação genética se transforma em proteínas graças a intermediários como o RNA mensageiro. Então você faz uma cópia do DNA, depois uma do RNA, e isso permitirá formar uma proteína. O que a gente desvendou, muitos anos depois, é um processo que acontece nas células de seres complexos como nós, chamado de splicing do RNA.

O que acontece? Quando o RNA é sintetizado pela primeira vez como uma cópia do DNA, essa molécula é bem mais longa que a necessária para produzir uma proteína. Então o RNA é cortado e emendado de modo que pequenos pedaços dele sejam reunidos para formar o RNA que permitirá rodar a sequência de que precisamos. É como se fosse um produtor de cinema fazendo um filme. Ele grava inúmeras cenas diferentes e depois corta e junta o que interessa. Na genética, de tempos em tempos, conhecemos novas peças dessa história, como a existência desses RNAs muito curtos com propriedades químicas interessantes, os micro-RNAs, que resultaram no mais recente Prêmio Nobel.

E esse conhecimento já rendeu frutos, inclusive para deter a pandemia, não? Todo o trabalho que permitiu velocidade no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 à base de RNA começou, a rigor, já há algum tempo. No início, a ideia era criar moléculas de RNA mensageiro para utilizá-las como terapia para o câncer e outras doenças. Quando eclodiu a pandemia, grupos de pesquisa perceberam que essa técnica poderia ser usada também para fabricar imunizantes. Com isso, a proposta decolou e se tornou bastante popular. Agora os cientistas estão voltando às origens e estudando possíveis tratamentos. É difícil saber quanto tempo vai levar para chegarem a uma aplicação clínica robusta, mas acredito que, nos próximos anos, veremos o surgimento de diversas terapias baseadas em RNA.

Cinco anos depois de o coronavírus ganhar o mundo, esse foi o grande legado científico da crise? A pandemia mostrou como a biotecnologia, e todo o dinheiro que investimos nela, pode ter impactos na saúde humana, e muito rapidamente. A vacina é um excelente exemplo: foi desenvolvida em tempo recorde e salvou milhões de vidas. O problema, ao menos nos EUA, estava na classe política, liderada por pessoas como Trump, que não queriam ouvir os cientistas e apresentavam soluções sem qualquer evidência.

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“Há pessoas que querem viver para sempre. A desvantagem de uma longevidade extrema é que acabamos com muitos idosos que não conseguem se manter, e isso tem um custo”

A busca por terapias capazes de ampliar a longevidade passa pelo RNA? Bem, eu temo que isso realmente seja possível. Mas, pessoalmente, acho que, quando não conseguir usar mais meu cérebro direito, ficarei feliz em morrer e abrir caminho para futuras gerações de pesquisadores. Precisamos ter em mente que a desvantagem de uma longevidade extrema é que acabamos com muitos idosos sem condições de se manter, e isso custa caro. Há pessoas que querem viver para sempre. Então, se elas sonham em ir para Marte e ter uma vida longa lá, deixe-as ir. Eu não tenho esse desejo.

O trabalho pelo qual o senhor ganhou o Nobel teve um momento heureca? Olha, foi algo em que ninguém tinha pensado antes. Mas, assim que fizemos a descoberta, todos os pesquisadores perceberam que tinham as pistas nos seus cadernos de laboratório e podiam explicar muitas coisas que não tinham sido capazes de entender anteriormente. O verdadeiro momento heureca aconteceu em um experimento para ver as sequências genéticas de um vírus. No processo, obtivemos resultados que não faziam sentido. Quando meu aluno de pós-doutorado me mostrou os achados pela primeira vez, eu o fiz repetir o experimento. Achei que ele tinha estragado tudo. Então eu mesmo refiz e obtive exatamente o mesmo resultado. A natureza estava tentando nos dizer algo… E, para um cientista, isso é particularmente emocionante, porque significa que há uma descoberta a ser feita. Levou quase um ano desde essas observações incomuns até o momento em que formulei um experimento para esclarecer o que estava acontecendo. Tive a ideia em um sábado e procurei dois colegas que trabalhavam com microscopia eletrônica para me ajudar. Na terça-feira, o mecanismo de splicing do RNA foi desvendado.

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Então, errar pode ser algo bem-vindo para um cientista? O fracasso é uma coisa maravilhosa na ciência, porque geralmente há apenas duas causas para ele. A primeira é que você arruinou tudo quando estava fazendo o experimento. Talvez você tenha cuspido no tubo de ensaio ou deixado cair os reagentes no chão. A outra é que não funcionou porque a natureza estava tentando lhe dizer algo.

Qual é o mistério da genética que o intriga agora? Hoje eu trabalho com bactérias. Em um processo chamado metilação do DNA, que é algo bastante relevante para a biologia, mas, atualmente, ainda não tão bem compreendido. Sabemos que esse fenômeno está envolvido, em alguns casos, com o controle do ciclo celular bacteriano, determinando quando o microrganismo deve ou não replicar. E, recentemente, fizemos uma descoberta relacionada ao Clostridium difficile, uma bactéria desagradável por trás de infecções hospitalares. Ela tem a propriedade de formar esporos, ou seja, suas células podem ficar inertes por um período e são reativadas em um momento oportuno. E isso é um problema para nós, porque, se você vai tratar a infecção com antibiótico, a bactéria pode simplesmente parar e esperar que o remédio desapareça para voltar a crescer. A gente descobriu que essa capacidade é controlada por essa metilação do DNA. Se intervirmos aí, a bactéria não conseguirá mais virar esporos. Por isso há dois estudos clínicos em andamento, testando medicamentos para interferir nesse processo de forma segura, o que poderá ter grandes consequências na superação de infecções hospitalares.

Pesquisas como essa reforçam a importância da ciência básica, aquela feita em laboratório sem uma aplicação prática tangível. Será que estamos dando valor suficiente a ela? As principais descobertas na medicina vêm da ciência básica. Essa é uma das razões pelas quais estamos tão preocupados com o governo de Donald Trump, que tenta convencer os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA a dedicar-se aos estudos clínicos (fase de testes em humanos), não aos experimentos que os precedem em laboratório. Mas é essa etapa que permite, no futuro, que as empresas desenvolvam e fabriquem medicamentos. Nós, que trabalhamos com a ciência básica, não resolvemos os problemas sozinhos, mas fazemos as descobertas que permitem um dia resolver os problemas.

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Por falar em Trump, como podemos lidar com autoridades que professam o negacionismo científico? Nós, cientistas, precisamos nos unir. Precisamos somar vozes e tentar ensinar e convencer os políticos e o público sobre a importância do método científico, esse aparato que permite, entre erros e acertos, fazer descobertas. Afinal, a ciência é um processo de autocorreção. A lógica é diferente de áreas como a publicidade, em que o anunciante pode aparecer e contar uma mentira que ninguém vai checar. Infelizmente, porém, é o que vemos na política hoje. Robert Kennedy Jr. (secretário de Saúde nomeado por Trump e militante antivacina) é um exemplo clássico: ele apenas mente.

“Os cientistas precisam aprender a falar a língua do público. A explicar, de um jeito compreensível, no que estão trabalhando. Isso sensibiliza as pessoas a apoiarem sua causa”

Colocar cientistas em cargos políticos seria uma saída? Isso pode ser útil se eles tiverem um diálogo positivo com os governantes. Agora, quando eles mesmos são eleitos, muitas vezes se tornam rapidamente políticos e deixam a ciência de lado. O que é bastante perigoso, porque você passará a encontrar políticos argumentando: “Eu sou um cientista, acredite em tudo o que eu digo”.

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Universidade, empresa, startup… Qual é o melhor lugar para inovar? A universidade, sem sombra de dúvida. As pessoas que conduzem pesquisas ali não as fazem por interesse financeiro. Em geral, recebem uma subvenção do governo e apostam em ideias que as interessam e entusiasmam. Se você trabalha numa empresa, principalmente as de capital aberto, será cobrado pelo retorno financeiro e sobre como gerar lucro rapidamente.

Qual é o maior desafio do cientista hoje? A dificuldade mais imediata é conseguir verba para fazer pesquisa. Mas eu pensaria em algo além e um pouco diferente. Acredito que os cientistas precisam realmente aprender a falar a língua do público em geral. A explicar para a comunidade, de um jeito compreensível, no que estão trabalhando. Isso sensibiliza as pessoas a apoiar sua causa, a cobrar dinheiro (do governo) para jovens pesquisadores trabalharem. É algo que normalmente não ensinamos na escola, mas deveríamos, e desde cedo.

O Brasil é um país que sofre cronicamente da falta de verba para pesquisa. Como fazer a diferença num mundo em que a maioria dos prêmios Nobel é concedida a profissionais de nações ricas? O primeiro passo é convencer o governo a investir mais, lembrando que também é possível buscar financiamento em fundações e empresas. A chave, porém, é trabalhar em áreas do conhecimento que não são bem cobertas pelo resto do mundo. É muito difícil competir com cientistas que trabalham em um país desenvolvido, onde abundam recursos. Se você escolher o campo e o caminho certos, terá muito mais chances de fazer grandes descobertas.

Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931

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