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Presidente da Eletronuclear defende conclusão de Angra 3: ‘Vamos chupar dedo?’

Raul Lycurgo diz que estigma do passado está superado e ressalta que a energia atômica hoje recebe investimentos de Bill Gates, Amazon e Google

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 out 2024, 11h38 - Publicado em 4 out 2024, 06h00

A produção de energia elétrica a partir de usinas nucleares sempre foi motivo de controvérsia no Brasil. Para os críticos, a tecnologia envolve riscos de grandes acidentes, o lixo produzido ameaça o planeta e os altos custos não justificariam os benefícios. Para Raul Lycurgo, presidente da Eletronuclear, esses argumentos não passam de preconceito, ideias equivocadas repetidas durante décadas por ambientalistas. Os acidentes de Chernobyl, na antiga União Soviética, e Fukushima, no Japão, os dois maiores da história, segundo ele, fazem parte do passado. O mundo está redescobrindo a energia nuclear. Durante a última conferência do clima da ONU, 116 países se comprometeram a triplicar suas fontes renováveis até 2030, sendo que 22 pretendem atingir a meta através de geração atômica. De olho nessa tendência, o governo Lula estuda retomar a construção de Angra 3, obra paralisada há nove anos e que já consumiu 12 bilhões de reais. Nesta entrevista a VEJA, o ex-procurador federal Lycurgo diz que a energia nuclear é limpa, segura e pode ficar mais barata.

Por que o senhor diz que é hora de o Brasil dar mais atenção a outras matrizes energéticas? A gente tem um sistema hídrico muito forte, que, somado às energias solar e eólica, que são fontes renováveis, representa mais de 85% da nossa matriz elétrica. Enquanto isso, 60% da energia do mundo é produzida queimando carbono, ou seja, poluindo. O fato é que o Brasil já fez a transição elétrica, e o resto do planeta almeja chegar em 2050 aonde estávamos em 2015. Nós fizemos a nossa tarefa. A grande questão é que poluição e eventos climáticos não têm passaporte, eles viajam o mundo inteiro de um lado para o outro. Devemos nos questionar: o nosso sistema está preparado para eventos climáticos extremos, que podem comprometer o abastecimento?

Está? A gente teve um 2023 extremamente generoso em chuvas, com reservatórios vertendo água antes do fim do período úmido. Em 2024, por outro lado, tivemos os meses de junho, julho e agosto mais secos da história. O Rio Madeira virou “Rio Areia”. Eu fui acionado pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) em julho e agosto para que a gente não fizesse manutenção nem parasse em hipótese alguma, exatamente porque eles precisam da nossa geração. Este é o ponto: a energia nuclear garante resiliência ao sistema elétrico. As nossas usinas funcionam 24 horas por dia, sete dias da semana, 365 dias no ano. Mas elas ainda representam pouco em termos de volume.

“O mundo vai precisar de mais energia. Isso é o futuro. Não é por acaso que Bill Gates, Warren Buffett, Microsoft, Google, Amazon estão investindo em geração nuclear”

Ampliar essa capacidade de produção significa construir novas usinas, ou seja, investir quantias astronômicas. Faz sentido gastar dinheiro nessa área? A França tem na sua malha 75% de energia nuclear, os Estados Unidos têm cerca de 20%. O Brasil hoje não chega a 2%. Precisamos ter esses 20% ou 75%? Não, porque nós temos água, temos vento e temos sol. A diferença é que a energia nuclear produz potência e dá estabilidade para o sistema, e é necessário ter na base uma energia firme para conseguir suprir as fontes intermitentes. Temos a meta de chegar, até 2050, a uma produção seis vezes maior do que a capacidade que temos hoje. Retomar as obras de Angra 3 é o primeiro passo nessa direção.

O governo, então, já decidiu investir em energia nuclear? O presidente Lula é um desenvolvimentista que pensa no amanhã. Quando fui convidado para assumir o cargo, o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia) me deu duas missões: reorganizar a empresa e retomar a construção de Angra 3. No nosso cronograma está prevista a licitação para o primeiro semestre do ano que vem e, no segundo semestre, a contratação da empresa que vai tocar a obra. Depois disso, deslanchamos. Se tudo sair como planejado, em dezembro de 2030 ou início de 2031 a usina estará funcionando. Investir em energia nuclear é uma tendência que está atraindo inclusive o setor privado em vários países. O Bill Gates, por exemplo, criou uma empresa que está construindo uma usina nuclear de última geração. Esse é o caminho.

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O senhor está dizendo que usinas nucleares também são um bom negócio? Vou dar um exemplo que ajuda a ilustrar essa necessidade. Uma pesquisa realizada num site de busca consome, digamos, um número “x” de energia. Uma pesquisa usando as novas ferramentas de inteligência artificial consome pelo menos dez vezes mais. O mundo vai precisar de mais energia. Isso é o futuro. Não é por acaso que Bill Gates, Warren Buffett, Microsoft, Google, Amazon estão investindo em geração nuclear. Assim como eles, tem muita gente que já ouviu o tiro da largada e saiu correndo na frente. Nós vamos ficar aqui chupando dedo?

Angra 3 já consumiu 12 bilhões de reais e estima-se que sejam necessários mais 23 bilhões para concluí-­la. Não é dinheiro demais para pouco resultado? O pior investimento em infraestrutura é aquele não feito, não realizado ou paralisado, porque vira gasto. Temos dentro da usina 12 000 equipamentos comprados. De 1980 até hoje, foram assinados contratos, assumiram-se responsabilidades. Precisamos resolver isso. Se desistirmos, além de perdermos o que já foi investido, ainda teremos de honrar financiamentos, arcar com as penalidades e devolver aos cofres da União os incentivos fiscais recebidos.

Fora a questão financeira, o que acontece com o setor nuclear se Angra 3 não for concluída? Infelizmente, você acaba colapsando, e isso vai além do pagamento da dívida. A INB (Indústrias Nucleares do Brasil), que é a grande produtora e que pode se tornar um exportador de combustível nuclear para o mundo, tem 95% da receita em cima da Eletronuclear. Nesse cenário, com o mundo todo indo para o setor nuclear, você vai deixar tudo o que fez para trás? Como brasileiro, eu me nego a considerar essa possibilidade. Por isso defendo a conclusão com unhas e dentes. Meu foco é fazer com que o setor nuclear seja pujante, porque ele vai gerar muita renda e emprego para o Brasil e o preço tende a cair, apesar dos muitos interesses que isso vai contrariar.

O lobby dos outros setores de energia contra o avanço do modelo nuclear atrapalha de alguma maneira? É uma briga, lógico. Você tem aí cada um defendendo a sua fonte, sendo que tem espaço para todo mundo. Isso atrapalha, mas a gente precisa vencer esse preconceito. Hollywood fez muito mal ao setor nuclear. Quando você olha os filmes, quando você fala sobre acidente nuclear, é toda aquela coisa catastrófica.

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E os riscos de acidente, contaminação, poluição do meio ambiente? O sistema nuclear está em operação desde 1955, e você conta nos dedos os incidentes. A gente fala de Chernobyl, que aconteceu dentro de uma União Soviética já sucateada, uma usina que não tinha as proteções que têm as usinas modernas. Fugiu do controle por dezessete segundos e infelizmente deu no que deu. Houve cerca de trinta mortes como resultado imediato, além de outras mais adiante, infelizmente. No caso de Fukushima, mais recente, o acidente foi provocado por um terremoto gigantesco, seguido de um maremoto que matou 20 000 pessoas e atingiu as linhas de transmissão da usina. Aí você pergunta: quantas morreram do que aconteceu com o reator nuclear? Nenhuma. Isso foi comprovado pela Agência Internacional de Energia Atômica. Fukushima já está operando novamente. No Brasil, nunca houve registro de qualquer acidente.

Outra crítica que se faz às usinas é em relação aos rejeitos, ao lixo tóxico. Tem quarenta anos que a gente produz energia em Angra 1 e 22 anos que a gente produz em Angra 2. Nenhum rejeito nuclear e nenhum combustível nuclear usado saiu da nossa usina, cujo sítio inteiro tem uma área de apenas 1 quilômetro quadrado. Está tudo lá dentro, guardado. Rejeito é roupa, luva, equipamentos… Você não consegue limpar, dá o tratamento, armazena dentro de um tonel. Já o combustível eu posso reciclar, e é esse o objetivo do Brasil mais para frente. Enquanto isso, fazemos igual nos Estados Unidos, deixando tudo no depósito, bem armazenado, seguro.

“Havia a concepção de que a energia solar e a eólica resolveriam o problema. A realidade se impôs. Os ambientalistas tiveram de se converter — a fórceps, mas se converteram”

Quer dizer que os ambientalistas se renderam à energia nuclear? Eu diria que sim. De 2000 a 2015 havia a concepção de que a energia solar e a eólica iriam resolver o problema. A realidade se impôs. Os ambientalistas tiveram de se converter — a fórceps, mas se converteram. O sonho não se materializou. Tanto é que na COP28, no ano passado, o que se dizia? “Volta a nuclear, por favor.” Se eu fosse presidente da Eletronuclear em 2000, teria sido xingado na conferência. Passados 24 anos, eu estava sentado na primeira fila. A tônica é que não existe transição energética sem a energia nuclear. E, para completar, nós temos um pré-sal enterrado no Brasil, um tesouro que é o urânio. Ainda é caro, eu sei, mas vamos abandonar tudo isso, na contramão do planeta?

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A privatização da Eletronuclear é uma alternativa? Acredito que não, mas acho que tem espaço para a abertura do mercado. Hoje a Eletronuclear tem uma geração de caixa operacional pequena. São 4,3 bilhões de reais de prejuízos acumulados. Os dois acionistas (União e Eletrobras) estão brigando. A Eletrobras desde 2022 não põe dinheiro. Nos Estados Unidos, na Suécia e no Japão, por exemplo, o investimento em energia nuclear é privado. No caso do Brasil, precisaremos de um volume enorme de recursos para atingir as metas que foram pactuadas para 2050 na conferência do clima. Será que teremos suporte, força financeira para isso? Provavelmente, não. O Estado não precisa ser o único investidor. A Eletronuclear pode ser sócia de novos empreendimentos, a partir da fixação de um novo marco legal para o setor. Deixar o mercado fechado e achar que a gente vai conseguir fazer isso sozinho, sendo bem franco, é muito difícil.

Um ex-presidente da Eletronuclear foi preso em 2015, acusado de cobrar propina durante a construção de Angra 3. O que mudou depois disso? Hoje nós temos um compliance robusto, temos comitês de auditoria, e eu vou diretamente ao Tribunal de Contas da União (TCU) antes de tomar certas decisões. Tem algum processo simples numa construção de 39 anos? Não tem. Mas eu não posso ter receio nem preconceitos. Quem fez lá atrás que resolva. Daqui para frente, há garantia de que os erros cometidos no passado não vão ocorrer.

Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913

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