O senador Sergio Moro (União Brasil-PR) é uma figura impossível de ser dissociada da Lava-Jato. Principal rosto da operação que provocou terremotos no mundo político, ele atribui ao “revanchismo” a tentativa de cassar o seu mandato, que foi enterrada por unanimidade pelo Tribunal Superior Eleitoral em maio. De volta ao jogo, critica o movimento para reescrever a história sobre os vastos esquemas de corrupção que ajudou a desvendar e diz que não faz sentido negar o que aconteceu no país porque “os fatos são coisas teimosas”. Embora tenha ficado célebre pelo rigor com que tratou casos envolvendo grandes nomes da República, como o hoje presidente Lula, ex-ministros, ex-governadores e ex-presidentes da Câmara, o ex-juiz adota outro tom ao ser questionado sobre as investigações envolvendo Jair Bolsonaro — de quem foi ministro da Justiça — e seus apoiadores. Sobre o indiciamento do ex-presidente no caso das joias sauditas, avalia que o ato da Polícia Federal foi “prematuro” e pede “parcimônia” e cuidado com “acusações que não serão compreendidas pela sociedade”. Leia a entrevista.
Como ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, o que o senhor achou do indiciamento dele pela Polícia Federal no caso dos presentes sauditas? As joias, por seu valor elevado, deveriam ter sido incorporadas ao patrimônio da Presidência. No entanto, Lula e Dilma também tiveram problemas dessa espécie e jamais foram acusados de peculato. O que havia era uma controvérsia jurídica sobre se os bens deveriam ir para o acervo pessoal ou presidencial. O caso de Lula passou pelas minhas mãos e não teve acusação desse tipo, pois não houve uma intenção criminosa. Como acusar Bolsonaro de se apropriar indevidamente das joias com Lula ao mesmo tempo passeando por aí com o relógio Piaget (presente recebido do então presidente francês Jacques Chirac em 2005) no pulso? Temos que tomar cuidado com essas investigações para evitar o acirramento da polarização com acusações que não serão compreendidas pela sociedade.
O senhor acha que não há, então, embasamento suficiente para indiciar o ex-presidente? O indiciamento feito pela PF foi prematuro e seria mais apropriado tratar a questão como uma infração administrativa, incorporando joias e relógios ao patrimônio público. Mas isso ainda vai passar pelo crivo da Procuradoria-Geral da República e do Supremo, que, espero, ajam com parcimônia.
Como o senhor avalia a condução dos inquéritos que apuram os atos antidemocráticos pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF? As invasões e a depredação de patrimônio público em 8 de janeiro foram deploráveis. Mas participei da CPMI do Congresso sobre esse tema e não houve elementos que autorizassem a conclusão de que aquilo foi um plano organizado. Se existem, estão eventualmente sendo apurados em investigações. O fato é que até hoje eles não apareceram. Por mais que seja necessária uma sanção àqueles atos criminosos, há uma avaliação de que houve, em casos específicos, um apenamento extremamente rigoroso. Na linha para a pacificação do país, e até pensando na situação de justiça individual, seria oportuno que houvesse uma revisão dessas penas para baixo pelo próprio Supremo, se possível.
“Tenho orgulho da Lava-Jato e discordo dessa tentativa de reescrever a história. Mas não ocupo a tribuna falando em tríplex, em sítio de Atibaia. Eu olho para o presente e o futuro”
O senhor se sente fortalecido após ter sido absolvido no processo que pedia a cassação do seu mandato? Queriam se aproveitar do clima político de revanchismo para tentar fazer prevalecer teses absurdas que, em um contexto normal, sequer seriam cogitadas. Não conseguiram. A Justiça Eleitoral foi técnica e independente. Nunca deixei de estar focado no meu mandato. Mas claro que, superada essa etapa, fica mais fácil. Posso trabalhar com um pouco mais de tranquilidade. Mas o país ainda está longe da pacificação necessária e seria importante que todos os atores, Legislativo, Judiciário, Executivo, pusessem a bola no chão. Vamos garantir segurança jurídica, previsibilidade, tanto nas decisões judiciais quanto nas ações do Executivo e do Legislativo.
O revanchismo seria por causa de sua atuação como juiz? Tenho muito orgulho da Operação Lava-Jato, do trabalho que foi feito, e discordo completamente dessa tentativa de reescrever a história. Mas não ocupo a tribuna do Senado falando em tríplex, em sítio de Atibaia. Eu olho para o presente e o futuro. Essa ação de cassação faz parte de um movimento de revanchismo histórico. Infelizmente, ele ainda não acabou, mas seria bem melhor ao país se reconhecêssemos o que aconteceu no passado, aquele descalabro de corrupção, e voltássemos a defender mecanismos de prevenção e de combate. No entanto, isso me parece impossível dentro do governo Lula.
Há cada vez mais um debate sobre o grande volume de dinheiro público — 6 bilhões de reais em 2024 — para financiar campanhas eleitorais. O senhor, que julgou vários casos de caixa dois e corrupção, vê espaço para a volta do financiamento empresarial? É um passo bastante arriscado. Não poderia ser algo semelhante ao que tínhamos. Teríamos que ter limites rigorosos de teto de doações pelas empresas. Penso que existem outras alternativas para baratear campanhas, como a velha discussão sobre o voto distrital. E também é preciso mais transparência no emprego das verbas públicas. Não sou um fã da volta do sistema anterior, dado o risco de corrupção e de conflito de interesses.
Empreiteiras envolvidas na Lava-Jato têm negociado acordos de leniência com o governo, com descontos que chegam a 50% do saldo. Como o senhor vê esse movimento? Discutir a revisão de acordo por dificuldades econômicas das empreiteiras é algo possível. Mas discutir revisão de acordos negando o que aconteceu no passado é um grande erro. Temos que admitir que o Brasil passou por um período no qual o público e o privado se misturaram e a prática de pagamento de suborno virou quase uma rotina em contratos com o setor público. Os fatos são coisas teimosas. Não faz nenhum sentido negarmos a existência deles. Espero que essa realidade não seja mais ignorada, mas infelizmente não é o que vemos nos discursos de Lula, que segue com a velha teoria da conspiração, de que foi tudo armação. Isso é grave, principalmente quando se reflete em políticas públicas, seja para desmontar mecanismos preventivos de corrupção ou enfraquecer a governança das estatais.
Lula tem feito duras críticas ao presidente do Banco Central e, recentemente, comparou a atuação de Roberto Campos Neto a sua condução da Lava-Jato, dizendo que a autoridade monetária tem “lado político” e trabalha para “prejudicar o país”. É a mesma coisa que ele fazia com a Lava-Jato. Em vez de reconhecer a corrupção e promover as mudanças necessárias para prevenir novos casos, ele buscava transferir a responsabilidade ao juiz, ao promotor, à Polícia Federal, criando aquela teoria da conspiração de que tudo era um plano dos Estados Unidos. A mesma situação ele faz agora. Já que a economia vai mal, ele levanta uma cortina de fumaça e busca transferir a responsabilidade ao Campos Neto. Votei a favor do arcabouço fiscal, mas vi que o próprio governo o jogou ao mar. O crescimento do déficit público impacta a produtividade do Brasil e vai comprometer nosso futuro. Faz com que a taxa de juros fique desse tamanho, já que o Banco Central não tem alternativa, dado o receio de um descontrole da dívida pública.
A última eleição presidencial foi marcada pela polarização ideológica, algo que é visto também no Congresso. Há espaço hoje para um resgate da chamada terceira via? Não podemos confundir polarização com oposição ao governo. Qualquer regime democrático sempre vai ter a situação e a oposição. Isso é normal. A alternância de poder, igualmente, faz parte do habitual dentro de uma democracia. O que tenho defendido não é o abandono do enfrentamento a Lula, mas a tentativa de evitar excessos, muitas vezes até de linguagem, ou ataques pessoais a quem não comunga com suas ideias. É possível encontrar pontos de consenso.
“Pode ser que eu me apresente como candidato ao governo em 2026. O que não deixarei é o Paraná cair nas mãos do PT ou de algum aliado. Sou um adversário que eles temem por razões históricas”
O senhor está há um ano e meio no Senado e sua atuação é voltada à segurança pública, com a defesa, por exemplo, do fim das saidinhas. Esse é o foco da sua atuação? O grande tema da atualidade, fora a economia, é a segurança pública. E o direito penal tem que ser sério. Nem ter excesso e nem ser leniente. O caso das saidinhas foi uma forma de sinalizar à população que vamos endurecer a legislação penal. Sou relator do projeto que pretende restringir a libertação indevida de presos em flagrante em audiências de custódia. Há casos de pessoas que cometeram várias infrações, inclusive crimes violentos, e são liberadas. Precisamos fechar essa porta giratória. E esse é um projeto do ex-senador Flávio Dino, que tem uma linha ideológica bem diferente da minha. Mas isso não impede de buscarmos um consenso para evitar solturas indevidas.
Como foi ter enfrentado uma ameaça de sequestro planejada pelo PCC? É preciso ter um grande rigor no combate às organizações criminosas, como fiz no Ministério da Justiça. Isolamos as lideranças em presídios federais, cortamos as comunicações com o mundo exterior ou pelo menos impactamos essa comunicação para evitar que continuassem comandando. Aprovamos a lei de ampliação do confisco de bens desses criminosos. A criminalidade refluiu. Isso é reconhecido pelos bandidos, que me têm como alvo. A ameaça do PCC foi uma retaliação pelo meu trabalho como ministro. Tiveram a ousadia de fazer um plano para praticar um atentado contra um senador da República e sua família. Isso revela o nível enorme de periculosidade dessas quadrilhas. E a gente precisa dar uma resposta. No ministério, fomos efetivos no combate à criminalidade. Hoje, o governo Lula, porque tem uma visão equivocada da política de segurança pública, está perdendo a guerra contra o crime.
O senhor pensa em tentar de novo concorrer à Presidência? Não pretendo disputar a eleição, mas quero apoiar um nome para derrotar o PT e Lula. E não por uma animosidade pessoal, mas simplesmente porque o país não aguentaria um novo ciclo de irresponsabilidade fiscal e administrativa. Há nomes que se apresentam, como o do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que é do meu partido.
E disputar o governo do Paraná em 2026? Pode ser que eu me apresente como candidato. O que não deixarei é o Paraná cair nas mãos do PT ou de algum aliado. Sou um adversário que eles temem por razões históricas.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901