Simone Tebet: “No mundo polarizado, só economia não ganha eleição”
A ministra fala do desafio de cumprir a meta de déficit zero e diz que a pauta de costumes será decisiva em 2026
Responsável dentro do governo por controlar com mão de ferro os gastos públicos, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, se equilibra entre um governo de centro-esquerda, ao qual aderiu na construção de uma frente ampla para frear as chances de vitória de Jair Bolsonaro, e as próprias convicções liberais, forjadas ao longo de 35 anos de carreira pública em um estado conservador e eleitor preferencial do ex-presidente. Essa aliança mudou a vida da ex-senadora, que precisou usar disfarce para andar nas ruas de Mato Grosso do Sul sem ser hostilizada. Com a meta de sanear as contas públicas e pavimentar um cenário fiscal favorável ao projeto de Lula para um quarto mandato, Tebet diz que, diante do alto grau de calcificação dos interesses do eleitor médio, um cenário econômico favorável, como o registrado recentemente em relação aos índices de inflação e desemprego, não pode mais ser tratado como receita certa para o sucesso eleitoral, inclusive para uma eventual reeleição do petista. Em um momento em que pesquisas de opinião mostram queda na popularidade presidencial mesmo com boas variáveis econômicas, a ministra afirma que a pauta de costumes terá papel crucial na escolha de quem governará o país a partir de janeiro de 2027. “No mundo polarizado, só economia não ganha eleição.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
A senhora tem como missão enxugar o orçamento, o que sempre é uma tarefa complicada e impopular. Como lida com isso? O Brasil tem de parar de olhar pelo retrovisor e começar a trabalhar para o presente. Em um país desigual como o nosso, que ainda não saiu do mapa da fome, temos diversas maneiras de revisar o gasto sem ter de cortar políticas públicas. Veja o caso dos precatórios: no orçamento, temos 60 bilhões de reais para investir e 90 bilhões em dívidas com precatórios, ações que tramitaram anos e anos na Justiça, que embutem juros, honorários advocatícios, custas processuais. São, em muitos casos, causas que já nascem perdidas. Ora, por que não antecipar e bater o martelo em questões em que já sabemos que vamos ser derrotados? Só isso já geraria uma economia de bilhões de reais.
Com uma regra fiscal rigorosa e a meta de déficit fiscal zero, cortar despesas não é uma exigência? Continuo defendendo a meta zero até o final. A regra fiscal empodera a avaliação de políticas públicas porque faz cada ministério sair da zona de conforto para que gastemos bem os recursos que temos. O problema não é gastar muito, é gastar mal. Houve fraude em alguns programas no governo passado e ainda estamos investigando se tem mais. Estamos procurando no INSS, em pagamentos de seguro-defeso, em cadastros do Bolsa Família. Temos de enfrentar não só os erros do passado, mas as políticas que já foram boas e estão sendo ineficientes neste momento. Estamos atacando em todas as frentes.
Como a senhora, ex-senadora, tem lidado com as pressões políticas? Não sofro pressão. Pelo lado da equipe econômica, até para que não tenhamos de fazer contingenciamento nem bloqueio e possamos aplicar os recursos para investimentos públicos, tenho um apoio que eu não esperava em torno da revisão de gastos. O ano passado foi o momento de repor políticas públicas, este ano é o de discutir a eficiência e a qualidade do gasto, e o ano de 2025 será o de analisar se essas políticas públicas estão chegando na ponta, se merecem continuar, e se certos benefícios devem continuar indexados ao salário mínimo. Será nesse momento, em 2025, que pode ser que eu sofra mais pressão.
“A economia não ganha eleição nessa polarização. Sem economia não há reeleição, mas só ela não é suficiente. Há um elemento novo, a pauta de costumes. Isso deve ser levado em conta”
Há quem diga dentro do governo que é necessário discutir o piso dos profissionais da educação e da saúde, o que significa, óbvio, aumento de gastos. Eu não discuto isso por uma razão muito simples: não passaria nunca no Congresso. Mas temos condições de discutir, por exemplo, como é aplicado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica. Hoje, 50% dos problemas de qualidade do ensino fundamental estão relacionados à qualidade do professor. Os recursos do Fundeb podem ser usados para incentivar jovens talentos a seguir a carreira do magistério. Por que não usar o dinheiro para custear bolsas para quem tem nota acima da média no Enem? Isso permite colocar um professor bem preparado em sala de aula. Podemos, dessa forma, mudar a realidade da educação no Brasil em quatro anos. A qualidade do gasto público é uma obsessão do Ministério do Planejamento.
Se o foco é arrumar as contas públicas, como cumprir a promessa de campanha do presidente de isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais? Temos de escolher batalhas. Aprovamos a reforma tributária do consumo, mas ela precisa ser regulamentada em 2024. Corretamente, o ministro Haddad entendeu que não dá para mandar imediatamente para o Congresso um projeto de lei mexendo na renda. É uma questão de cronograma. O presidente ainda tem três anos para cumprir essa promessa.
Mudou de opinião em relação à autonomia do Banco Central? Sou a favor da autonomia do Banco Central, que é garantia de estabilidade e credibilidade, mas talvez precisemos avaliar se é o caso de o presidente do BC ser indicado por um presidente e ficar dois anos no governo do sucessor. Pode ser interessante fazer uma pequena alteração: um ano com um período de transição.
Na campanha de 2022, a senhora se apresentava como a candidata que poderia pacificar o país. Se eleita, teria feito algo diferente do que o governo Lula faz hoje? A realidade é que temos um presidente democraticamente eleito em uma frente ampla. Infelizmente, a polarização e a visão ideológica de parte do Congresso atrapalham a governabilidade. Muitas vezes a parte econômica anda a passos mais lentos em função de a oposição sempre trazer o viés ideológico para o processo. A lua de mel entre o Congresso e o governo a gente sabe que acabou, mas a equipe econômica aprendeu a dialogar. O presidente também está vindo para a mesa de conversas e negociação. Vai viajar pelo Brasil e fazer menos viagens internacionais. Os resultados estão aí. Estamos indo bem.
A senhora vem de um dos estados mais bolsonaristas da federação. Aderir ao governo Lula foi uma boa decisão? O ano de 2023 foi muito difícil para mim. Era difícil andar na rua, era difícil descer em um aeroporto, era difícil andar no elevador do meu prédio. Sinto o ambiente mais tranquilo, apesar de o centro estar espremido pela polarização, e o centro ideológico ainda mais. Se o país não está pacificado, o ambiente agora pelo menos está mais civilizado. Talvez até por medo da Justiça, porque agora os extremistas sabem que não podem caluniar, difamar ou agredir qualquer cidadão, seja autoridade ou não. Hoje já consigo sair sem boné e óculos escuros no meu estado.
Algumas lideranças importantes do MDB já se articulam visando a uma aliança com o PT em 2026 para a disputa da reeleição de Lula. É uma boa estratégia? Não adianta ser vice para perder a eleição. O vice do presidente Lula tem de ser alguém que possa ajudá-lo a ganhar a disputa. A pesquisa é quem vai dizer se o MDB pode ter essa função. Não será uma eleição simples. A economia vai estar bem, mas se há um recado que precisamos entender é que só a economia não ganha eleição neste país polarizado. Enquanto houver polarização, ainda que em menor grau, a economia é apenas a base. Sem economia não há reeleição, mas só ela não é suficiente. Hoje há um elemento novo, que é a pauta de costumes. Isso tem de ser levado em conta.
A senhora vê clima político para a aprovação no médio prazo de uma anistia via Congresso para os condenados pelo 8 de Janeiro ou mesmo para o ex-presidente Bolsonaro? O Congresso Nacional é movido a rua e, fora algumas bolhas muito pontuais, não consigo ver pessoas na rua pedindo por uma anistia. Houve um movimento significativo na Paulista, ninguém nega, mas estamos falando de um universo de 205 milhões de brasileiros. As pesquisas mostram que a popularidade do ex-presidente Bolsonaro caiu drasticamente, e ele não tem maioria para chegar a convencer o Congresso de uma pauta como essa. Quem quer que atente contra o Estado democrático de direito precisa ser punido nos rigores da lei, seja ele financiador, agente político ou massa de manobra, como lamentavelmente uns poucos foram.
Como defensora da equidade de gênero, a senhora acha que este governo atende plenamente a essa pauta? Não, e sei que o governo tem consciência disso. O presidente Lula teve de fazer uma escolha diante da situação adversa em que pegou o governo. Adversa na questão institucional, na relação com o Congresso Nacional e na polarização. Temos um Congresso que exigiu mais ministérios. Ocorreram as saídas de ministras mulheres porque o cenário era adverso, mas podem ter certeza de que não foi uma vontade política do presidente. O presidente precisou adequar seus compromissos à realidade.
“Dilma é uma pessoa honesta, mas o processo de impeachment é baseado em uma lei que define como crime de responsabilidade a contabilidade criativa e a pedalada fiscal”
A senhora já foi chamada de golpista por ter endossado o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi um erro afastar a presidente? Não. Ali nós tínhamos todos os elementos constitucionais. E não foi um erro quem votou contra também. O que deu elementos de constitucionalidade para o impeachment foram os aspectos jurídicos de crime de responsabilidade, contabilidade criativa e pedalada fiscal, aliados ao fator político: uma economia em frangalhos. Essas duas coisas provocam o impeachment de qualquer pessoa, seja homem ou mulher, no Brasil. A presidente Dilma é uma pessoa honesta. A questão é que o processo de impeachment é baseado em uma lei que define como crime de responsabilidade, entre outras coisas, contabilidade criativa e pedalada fiscal.
Por ter apoiado o impeachment, a senhora não tem a simpatia dos petistas. Ao aliar-se a Lula, atraiu a antipatia do eleitorado mais conservador. Dá por encerrada sua carreira política? Não, mas não tenho isso como premissa na minha vida, não está no meu radar. Por tudo o que eu representei na eleição majoritária e pelo reconhecimento das mulheres de que nós podemos muito, de que merecemos ser respeitadas, de que lugar de mulher é onde ela quiser, tenho de ter a dimensão de que minha missão não está cumprida. Vejo hoje o Brasil com muitas necessidades e temos condições de ajudar tanto no aspecto social quanto no civilizatório. Pode ser que eu precise não ser candidata para cumprir uma missão. Mas não descarto nada.
O Brasil está preparado para ter novamente uma mulher na Presidência? Espero que esteja. Tem de estar.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885