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Trump mudou a maneira como o mundo lida com a China, diz Ferguson

Para o historiador, derrota do republicano serve de alerta para a estratégia de líderes como Jair Bolsonaro

Oferecimento de Atualizado em 4 jun 2024, 14h03 - Publicado em 4 dez 2020, 06h00

Dono de um invejável currículo que junta passagens por templos do conhecimento como Oxford, Cambridge e Stanford, o historiador escocês Niall Ferguson, 56 anos, atualmente membro-sênior da Universidade Harvard e professor visitante na Universidade Tsinghua, em Pequim, é um dos mais requisitados analistas da atualidade. Para tanto, se vale da profunda erudição de quem escreveu mais de quinze livros sobre política e economia, entre eles sucessos como A Ascensão do Dinheiro, Império (sobre a expansão colonial britânica), Colosso (sobre o imperialismo americano) e O Horror da Guerra (sobre a I Guerra Mundial) para lançar luz sobre os fatos atuais. É o caso da recente derrota sofrida pelo presidente americano Donald Trump e seu impacto no resto do mundo. Republicano, conservador e ex-conselheiro do senador e candidato a presidente John McCain (1936-2018), vencido por Barack Obama no pleito de 2008, Ferguson discorda da visão de que Trump é um extremista de direita. Da mesma forma, relativiza o papel do americano em servir de modelo a outros líderes populistas ao redor do mundo, como Jair Bolsonaro. Para ele, Trump cometeu erros e pagou por eles nas urnas, mas acertou em alguns pontos como captar os anseios de uma considerável parcela dos americanos e mudar a visão que outras potências ocidentais têm da China. “Os europeus estão felizes de ver Trump pelas costas, mas, ironicamente, graças a ele perceberam que deveria haver uma mudança de abordagem com os chineses”, avalia na entrevista a seguir.

A derrota do presidente Donald Trump para o democrata Joe Biden significa o início do fim da era dos populistas de extrema direita? Não acho que Trump era um político de extrema direita, como também, em algumas questões, não era da direita tradicional. A política fiscal sob o seu governo gerou um enorme déficit antes mesmo de a Covid-19 chegar. Trump defendeu o dinheiro fácil e pressionou o Federal Reserve a reduzir as taxas de juros, isso não é um comportamento de um político de direita em questões econômicas. Em assuntos como imigração, ele certamente tinha um posicionamento de direita. Mas não acho que defender o combate à imigração ilegal nos Estados Unidos seja um posicionamento extremista. Acho que essa é uma interpretação equivocada do que ele realmente representou. Trump representa uma espécie de populista americano tradicional do século XIX, não um fascista saído da Europa dos anos 1930.

De qualquer forma, para essa direita populista espalhada pelo mundo, a saída de Trump significa uma perda importante, não? Políticos populistas e conservadores não precisam de liderança ou alinhamento internacional, justamente porque o nacionalismo é um pilar de seu modelo de governo. Portanto, não acho que isso seja relevante. Alguns deles já deixaram claro que vão se dar bem mesmo com Joe Biden no poder. Narendra Modi, o primeiro-ministro indiano, por exemplo, parabenizou muito rapidamente o novo presidente. Ajudou o fato de que sua vice, Kamala Harris, é filha de mãe indiana. A derrota de Trump não será muito importante para os países que não dependem muito dos Estados Unidos para apoio econômico ou militar, como é o caso do Brasil. Seria um erro exagerar as consequências internacionais da derrota de Trump.

“Donald Trump representa uma espécie de populista tradicional americano do século XIX, não um fascista saído da Europa nos anos 1930”

Ainda assim, no Brasil, especula-se sobre os riscos de o presidente Jair Bolsonaro vir a enfrentar problemas com a vitória de Joe Biden. Como o senhor avalia esse impacto? O relacionamento entre Jair Bolsonaro e Joe Biden de fato vai ser difícil. A reputação de Bolsonaro na mídia progressista americana é terrível. E é pouco provável que Biden queira iniciar um relacionamento mais amistoso com alguém que se alinhou tão fortemente a Trump e outro dia endossou a ideia de a eleição ter sido roubada. Mas minha sensação é que, apesar de eventuais atritos e provocações, Bolsonaro não sofrerá especialmente com a derrota de Trump. O Brasil nos dias de hoje não é tão dependente dos Estados Unidos e em última análise é um país tão autossuficiente que se torna um mundo em si. Mas eu acredito que a derrota de Donald Trump deve levar Bolsonaro a pensar muito sobre como evitar o mesmo destino quando for candidato à reeleição.

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Por que ele deveria ter esse tipo de preocupação? Joe Biden não foi eleito porque achavam que ele tinha a melhor chance de vencer, era o mais inteligente ou o mais jovem, mas porque se mostrou a opção mais segura para os americanos em um momento desafiador. Trump cometeu uma série de erros que lhe custaram a eleição. Ele se colocou à frente e ao centro da resposta à pandemia — e desagradou aos eleitores com suas posições equivocadas. Lançou calúnias sobre o sistema eleitoral americano, alienou eleitores do sexo feminino e mais jovens. Além disso, não conseguiu obter do Congresso apoio a sua política fiscal nos meses que antecederam à eleição. Sua performance no primeiro debate foi um desastre.

O senhor acredita que uma transição para um posicionamento político mais ao centro e menos confrontador possa ser vantajosa para o presidente brasileiro? Acho que a lição desta eleição é que você não pode vencer apenas com sua base de seguidores fiéis. Você precisa atrair e aglutinar apoios e seguidores ao centro (veja reportagem na pág. 36). Biden venceu porque disputou como o Sr. Moderação (Mr. Middle Ground)e transformou Trump em uma bola de demolição. Funcionou.

Como Biden conseguirá cumprir suas promessas para a recuperação econômica americana com a dívida pública já em patamares elevados? O problema não é o tamanho da dívida pública, mas sim o fato de os democratas provavelmente não terem conseguido bom desempenho no Senado. Se os republicanos mantiverem o controle, eles poderão obstruir a maioria dos planos de Biden, bem como as nomeações que ele queira fazer. O importante é saber que esta é a primeira vez desde 1884 que um candidato democrata vence a Presidência, mas não faz maioria no Senado. Então, estamos entrando em um período de governo muito incomum, dividido. Não será fácil para Biden fazer as políticas fiscais de grande escala que tinha em mente — ou seja, gastos em grande escala com saúde pública, educação, infraestrutura. Ele vai precisar que os republicanos concordem com essas propostas. E isso não vai ser fácil, dado seu histórico como líder do Senado.

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Como o senhor avalia o conflito comercial entre os Estados Unidos e a China a partir de agora? Biden será um presidente muito mais simpático à Pequim do que Trump. Ele começou sua campanha no ano passado dizendo que a China não era realmente uma ameaça. Mas será difícil para Biden retornar completamente à política dos Estados Unidos de 2016, que era essencialmente aceitar a ascensão da China como algo irrefreável e tentar ter boas relações com Pequim. Se ele tentar, poderá enfrentar críticas consideráveis ​​de seus próprios apoiadores, bem como dos republicanos. Não vamos viver mais aquilo que há alguns anos chamei de Chimérica, com a China e os Estados Unidos praticamente formando um bloco coeso e afinado. A atmosfera só será um pouco menos tóxica do que era sob Trump.

É possível para Biden pressionar a China dentro de instituições multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) sem partir para rupturas? Sim. Os europeus recentemente passaram a ver a China de forma mais crítica, perceberam que o país pode representar uma ameaça para as sociedades livres, tanto econômica quanto politicamente. E a eleição de Biden cria um contexto mais favorável para definir uma estratégia conjunta. Os europeus estão felizes de ver Trump pelas costas, mas, ironicamente, graças a ele perceberam que deveria haver uma mudança de abordagem com os chineses. Biden é muito mais amigo do sistema de alianças tradicional e também das instituições multilaterais. Trump sentiu que poderia enfrentar a China sem aliados, o que sempre me pareceu um tanto desvairado. E esse foi de fato o seu erro, porque não se pode vencer uma Guerra Fria unilateralmente. Você precisa de alianças e de organizações internacionais, como foi contra a União Soviética.

A China tem a real capacidade de tomar o posto dos Estados Unidos de maior potência mundial? Em termos de produto interno bruto, a China está alcançando os Estados Unidos a cada ano, porque a sua economia cresce mais rápido do que a americana. Mas é difícil prever onde estaremos daqui a dez anos. Em algum momento, veremos uma redução na taxa de crescimento chinês. O país tem problemas muito sérios como o envelhecimento de sua população e a grande dívida do setor privado. Não sabemos se os chineses conseguem manter uma taxa de crescimento de cerca de 5% por muito tempo. Minha suspeita é que ficará em torno de 2% a 5% nos próximos anos. Pessoalmente, acho que as pessoas estão superestimando a sustentabilidade do modelo chinês e veremos a sua economia crescendo a taxas muito menores na próxima década. Isso pode significar que a China nunca alcançará os Estados Unidos.

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“O dólar é a moeda dominante e não há nada para substituí-lo num mundo em que o Japão se tornou um lar de idosos, a Europa é um museu e a China é uma prisão”

Com a China e o avanço do dinheiro digital, a hegemonia do dólar está ameaçada? O dólar é a moeda dominante do planeta, não só em termos de reservas dos bancos centrais, mas também em transações internacionais. A maior parte do comércio é feita em dólares e não há uma moeda rival óbvia agora. Vou citar meu velho amigo Lawrence Summers, ex-se­cretário do Tesouro americano: “Você não pode substituir algo por nada”. Não há nada para substituir o dólar quando o Japão é um lar para idosos, a Europa é um museu e a China é uma prisão. E o bitcoin ainda é um experimento.

O Brexit está se aproximando. Ele será um rompimento brusco com a Europa? Ao deixar o mercado único europeu, o Reino Unido terá a partir de 2021 uma relação com a União Europeia semelhante à que existe entre o Canadá e a Europa. Será uma grande mudança e marca o fim de décadas de integração. Eu era contra o Brexit, achei que era um erro, e que será um divórcio que vai custar mais caro do que o esperado. Mas a vontade política dos eleitores ingleses certamente foi muito clara, e não parece ser possível mudar isso. A Grã-Bretanha pediu o divórcio. Como qualquer pessoa que se separa sabe, é raro reverter tal processo. E, para piorar, Biden não é fã do Brexit. Ele vai priorizar as relações com Berlim, Paris e Bruxelas, ainda que os laços entre Washington e Londres sigam fortes em áreas específicas como inteligência e cooperação militar.

Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716

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