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2019: um ano de turbulências

Do clima à democracia, riscos foram espalhados pelo mundo afora. Governo Bolsonaro fez a sua parte: do desprezo ao meio ambiente à nostalgia do AI-5

Por Roberto Pompeu de Toledo
Atualizado em 4 jun 2024, 14h44 - Publicado em 27 dez 2019, 06h00
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  • Foi o ano de todos os desvarios. Ou seria melhor dizer “o ano de todas as perplexidades”? Foi o ano das explosões nas ruas, da Bolívia a Hong Kong, do Equador ao Iraque, do Irã ao Chile. Também se poderia dizer que foi o ano das “monumentais demonstrações de impaciência”, conforme o jornalista inglês Jeremy Harding classificou o movimento dos coletes-amarelos da França. Os desvarios marcaram o ano por efeito do comportamento de líderes como Donald Trump, nos Estados Unidos, Boris Johnson, no Reino Unido, e Jair Bolsonaro, no Brasil, entre outros. Criadores de uma estratégia do estardalhaço, exploraram-na como um meio de atrair atenções, ganhar novas adesões e garantir as antigas. As perplexidades vão por conta dos protestos de massa que nascem por um nada e evoluem para um tudo.

    Foi o ano de alarmes trágicos e de derrocadas cômicas. O Dicionário Oxford, que desde 2004 elege a palavra do ano, anunciou que climate emergency, emergência climática, era a vencedora de 2019. “Neste ano, o crescente interesse do público pela ciência do clima, e a miríade de suas implicações para comunidades ao redor do mundo, gerou enorme discussão sobre o que o secretário-geral da ONU chamou de ‘a definidora questão de nossa época’ ”, justificaram os responsáveis pela escolha. Também pesou o fator quantitativo. Ao fim de pesquisas em um amplo espectro de sites de língua inglesa, o Dicionário Oxford descobriu que climate emergency apareceu neste ano, até setembro, 100 vezes mais do que em igual período do ano passado. Mundo afora, desvarios do fogo (nos incêndios da Califórnia) e da água (na enchente de Veneza) vieram a concorrer com os desvarios humanos. No Brasil foram quatro, em 2019, as tragédias do meio ambiente: Brumadinho, devastação da Amazônia, óleo nas praias e governo Bolsonaro.

    Derrocada cômica foi a do Brexit, que até a vitória conservadora, em dezembro, quando as coisas se desanuviaram, continuou fazendo que ia e não foi. O escritor inglês de origem búlgara Julian Popov chegou a projetar para o futuro distante, e divulgou pelo Twitter, a seguinte notícia: “O ano é o de 2192. O primeiro-ministro britânico visita Bruxelas para pedir uma extensão do prazo do Brexit. Ninguém se lembra de quando começou essa tradição, mas todo ano ela atrai muitos turistas do mundo inteiro”. Do vai não vai também emergiu uma nova palavra na língua inglesa: “brexiting”, assim descrita pelo Urban Dictionary: “Despedir-se das pessoas numa festa e continuar por lá”. O mesmo dicionário dá um exemplo: “O que há com Boris? Pensei que ele tivesse ido embora”, comenta um dos convivas. Outro responde: “Aparentemente, ele está brexiting”. Um ano, como se está vendo, pode se caracterizar pelas palavras que invoca. Já citamos algumas: desvario, perplexidade, emergência climática, brexiting. O governo Bolsonaro produziu as suas próprias. Qual o leitor prefere: “marxismo cultural”, “ideologia de gênero” ou “excludente de ilicitude”?

    PROTESTO – COLETES AMARELOS
    TEMPERATURA – Manifestação dos coletes-amarelos, no centro de Paris: movimento de quem não aguenta mais e explode (Alain Jocard/AFP)

    O sociólogo espanhol Manuel Castells, pioneiro no estudo das sociedades em rede, contribui com mais uma forte expressão: “explosão social”. Castells empregou-a numa palestra em Valparaíso, no Chile, enquanto ocorriam nesse país as caudalosas manifestações que tantas interrogações suscitaram. “O que se passa no Chile reflete o que se passa no mundo”, começou ele. A origem seria o “total descrédito” da política tradicional, do qual se seguiriam três consequências. A primeira é a transformação “fragmentária e caótica” dos sistemas políticos. A segunda, o surgimento de movimentos sociais, entidades que não se confundem com movimentos políticos. Os movimentos sociais buscam “a emergência, a difusão e o debate de novas formas culturais”. A terceira consequência são as explosões sociais. Elas surgem não para mudar esta ou aquela instituição. São produzidas, “simplesmente, por gente que não aguenta mais e explode”. Castells concluiu: “Não pensem que isso vai passar. Não é como um sonho que desaparece. Há causas muito profundas. As soluções, quem tem de encontrar são vocês, sociedade chilena, mas ninguém pense que com quatro medidas de algum tipo isso se vai”.

    Tal qual a explosão chilena, que nasceu do protesto contra o aumento da passagem do metrô e virou protesto contra tudo, o movimento dos coletes-amarelos, na França, nasceu contra o aumento da gasolina e evoluiu para uma pauta em que o céu é o limite. Ainda tal qual o chileno, o movimento francês filia-se ao gênero que causa perplexidade — o chileno por ocorrer no país mais bem-ar­rumado da América Latina, o primeiro da mesma turma em que o Brasil está matriculado, e o francês por ocorrer num dos países mais ricos do mundo. Para seguir a formulação de Castells, o movimento francês é, tipicamente, dos que surgem de gente que não aguenta mais e explode. O professor Alexandre Mendes, da Faculdade de Direito da Uerj, acompanhou em Paris uma das primeiras manifestações dos coletes-amarelos, ainda em fins do ano passado, e descreveu a experiência em artigo no site UniNomade. Nele, cita o depoimento de “um senhor de aproximadamente 60 anos”, aposentado, morador dos subúrbios da capital francesa:

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    “Estou cansado de ver a minha aposentadoria ficar cada vez menor, estou cansado de ter que devolver metade do que ganho para o Estado, a minha mulher foi procurar um apartamento de 100m2 em Paris e não pôde nem continuar em função do preço (…) Fui educado na escola tendo que baixar a cabeça, depois no trabalho com as ameaças do gerente, agora é o governo que impõe todas as medidas como se tivéssemos que aceitar tudo em silêncio. Não concordo com aquilo ali (apontando para uma fogueira no meio da rua), mas o importante é que estamos equilibrando o medo. Chega de sentir medo sozinho, agora eles também vão ter que sentir medo”.

    “Equilibrar o medo” é um achado. Teria chegado a hora de os governos sentirem a mesma dose de medo que impõem à sociedade. A expressão é de um anônimo e, não fosse o professor, tenderia a permanecer guardada na mente de seu autor. Passou longe, muito longe, de se tornar viral, como se diz em “internetês”. Mas, com toda a sua modéstia e limitado alcance, contém mais uma chave de decifração deste nosso enigmático mundo das explosões sociais. Entre outros muitos episódios, serve-nos, a nós brasileiros, para tornar mais clara a invocação do Ato Institucional Nº 5 por dois condestáveis do regime, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes.

    Paulo Guedes
    ESCURIDÃO – O ministro Paulo Guedes, que se referiu a um eventual retorno do Ato Institucional Nº 5: fantasma do passado (Pedro Ladeira/Folhapress)

    Os dois desenvolveram a mesma hipótese: no caso de as cidades brasileiras serem tomadas de protestos, como ocorre em países vizinhos, a consequência poderia ser a decretação de medidas semelhantes às adotadas por aquele ato da ditadura. Ora, quando Guedes repetiu o que Eduardo já havia dito, as únicas multidões que tomavam as ruas eram de torcedores do Flamengo. O que ambas as declarações traem é um medo antecipado, em torno de algo que ainda não existe, contra o qual antecipam à sociedade o medo de medidas que fechem o Congresso, manietem o Supremo Tribunal, cassem mandatos, prendam, censurem e abram o famoso excludente de ilicitude para torturar e matar inimigos políticos. É medo contra medo.

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    A “gente que não aguenta mais” tem provocado na Europa dois fenômenos: um, a procura de uma democracia que não a representativa; o outro, o fortalecimento dos partidos de extrema direita. Do primeiro tipo é o Cinco Estrelas da Itália, fundado pelo comediante Beppe Grillo e de trajetória tão avassaladora que, no seu nono ano de existência, em março de 2018, se tornou o mais votado do país, o que o credenciou a participar, como força dominante, do governo então formado. O Movimento Cinco Estrelas pretendia-se plural, nem fechado nas bandeiras da esquerda, nem fechado nas da direita, e, principalmente, pregava a democracia direta, exercida por meio da internet.

    Não foi o primeiro movimento a sonhar com a democracia direta, algo mais ou menos espalhado pelo mundo desde a consolidação da internet como meio instantâneo de comunicação de todos com todos, mas foi o que chegou mais longe. A internet, muito mais que as convenções e os comícios, foi o instrumento que lhe possibilitou a rápida ascensão. Seguiram-se deliberações internas on-line, escolha de candidatos e comunicação de eleitores com eleito por meio de uma rede própria, significativamente chamada Rousseau. A rede não permite, porém, a comunicação de um usuário com outro, e com o tempo seu uso declinou. Também declinou a suposta convivência de diferentes bandeiras e opiniões quando o movimento se tornou uma força que exigia coesão para não cair numa estéril cacofonia, e assim, além de o M5S (Movimento Cinco Stelle) ficar cada vez mais parecido com um partido comum, o sonho da democracia direta continuou apenas sonho.

    O parceiro do Cinco Estrelas, no governo que durou de junho de 2018 a agosto de 2019, foi a Liga, a antiga Liga Norte, o exemplo mais exitoso da extrema direita, a outra opção dos que “não aguentam mais”, na Europa Ocidental. Seu líder é Matteo Salvini, que, apesar de ter precipitado, com sua sede de protagonismo, a saída do partido do poder, permanece como o político mais popular da Itália. A Liga Norte surgiu como movimento separatista, a favor de uma república constituída apenas das ricas regiões do norte do país. Nesse tempo, Salvini não se furtava a cantar hinos em que os napolitanos eram descritos como sujos. Às eleições de 2018 o partido apresentou-se apenas como Liga, e trocou o ódio aos sulistas pelo ódio aos imigrantes, mais afinado com os instintos do eleitorado. Salvini, enquanto estava no poder, fez-se o machão que pessoalmente ia aos portos para impedir o atracamento dos navios de imigrantes. Também se apresentava com um rosário na mão, em desafio à laicidade do Estado, realizava discursos nas praças preferidas de Mussolini para arengar às multidões e uma vez pregou a formação de um novo “eixo Roma-Berlim”, revivendo a denominação dos tempos de aliança entre a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler.

    Salvini, cultuado pela família Bolsonaro, é espécime de um gênero de líder atualmente em voga — o do político bufão. A bufonaria, descobriu-se, especialmente nos meios de extrema direita, é a forma mais rápida e eficiente de galgar à condição de “carismático”, se é que se pode usar essa nobre palavra para qualificar os tipos vulgares e em geral ignorantes que hoje dominam o universo político. Os bufões não são apenas de direita porque Hugo Chávez, pela esquerda, também o era, e Maduro tenta sê-lo. À categoria também pertencem, estes na rica galeria da direita, Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. Não são bufões só de fazer rir. São bufões pelo jeito espalhafatoso de impor sua presença, pelo vocabulário rasteiro e agressivo, pela sem-cerimônia com que lançam ao ar mentiras e falsos argumentos, pela jactância, pela falta de seriedade.

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    Numa entrevista à imprensa em outubro, na Casa Branca, tendo ao lado o presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, Trump respondeu a questionamentos sobre suas relações com a Ucrânia e o processo de impeachment de que é objeto com grosserias contra a imprensa, feita de “gente corrupta” e propagadora de “fake news”, e, no auge das bufonadas, qualificou a si próprio como “o mais produtivo presidente da história”. Boris Johnson tem sua marca num despenteado tão elaborado quanto o ameaçador tsunami que Trump ostenta na cabeça para esconder a calva, e em confissões entre escandalosas e hilariantes como a de que não sabe quantos filhos tem.

    Hitler ovacionado
    NOSTALGIA – Hitler ovacionado em 1938: o crescimento da extrema direita na Alemanha hoje em dia já chama atenção (Keystone/Getty Images)

    Bolsonaro destaca-se, tanto quanto Trump, ou mais, pela audácia na manipulação do insulto e do ultraje, evidenciada, ao longo do ano, em episódios como o do vídeo de dois homens em cena de alta pornografia, postado em suas redes no Carnaval, ou como o live contra a Rede Globo, por causa de notícias que o situavam perigosamente perto dos matadores da vereadora Marielle Franco. “Por que, Rede Globo, essa patifaria por parte de vocês?”, disse. Aos gritos, os braços jogados para cima e para baixo, os cabelos em desalinho, ameaçou cassar a concessão dos canais do grupo: “Vocês, Rede Globo, o tempo todo infernizam a minha vida, porra!”. Já até nos acostumamos com aquilo a que nunca deveríamos nos acostumar, o fato inaudito, assombroso, teratológico, de ter uma família no governo. Os Bolsonaro juniores pintaram e bordaram ao longo do ano — na metralhadora giratória dos tuítes, na fritura de ministros, nos indícios de envolvimento com figuras do submundo carioca. Um deles quase foi feito embaixador em Washington; outro termina o ano enredado em cabeludas denúncias de corrupção.

    No capítulo das infâmias, jamais esquecer o dia em o presidente comentou um post com fotos de Brigitte Macron e de Michelle Bolsonaro acompanhado da legenda: “Entende agora pq Macron persegue Bolsonaro?”. “Não humilha cara. Kkkkkkk”, anotou Jair Messias. Ou, com mais razão, o dia em que, irritado com o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, soltou aos ventos: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto”. Bolsonaro, que tanto cita o versículo “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, nunca teve pejo em espalhar falsidades como a de que o estudante Fernando Santa Cruz teria morrido bêbado, num incidente no Carnaval, ou justiçado pelos próprios companheiros, e não torturado e assassinado pela ditadura.

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    O colunista David Brooks, do The New York Times, um conservador da estirpe clássica, escreveu, em meados do ano: “Trump é um revolucionário cultural, não um revolucionário em políticas públicas. Ele opera, e está sutilmente transformando a América, em um nível muito mais profundo. Opera no nível do domínio e da submissão, no nível em que o medo assoma nas pessoas e emerge o desprezo. (…) Todos nós estamos sendo sutilmente corrompidos enquanto essa pessoa é nosso líder. E ao longo desta campanha ele fará de si mesmo e de seus valores o centro da conversação. Todo dia encenará um pequeno drama cuja finalidade é redefinir quem somos, quais valores devemos acalentar e quem devemos odiar”. O que foi talhado para Trump veste bem em Bolsonaro.

    Entre desvarios e perplexidades atravessamos um ano acelerado, irracional, violento, transcorrido menos ao vivo do que na brutalidade das redes sociais. No que vai dar tudo isso? Fechamentos de regime ameaçam um pouco por toda parte. Em Dresden, na Alemanha, a Câmara Municipal declarou estado de “emergência nazista”. A medida, equivalente à “emergência climática”, e sem efeito prático, chama atenção para o crescimento da extrema direita na cidade e na região. “Significa que temos um problema sério”, disse o vereador Max Aschenbach, autor da proposta. “A sociedade democrática e aberta está em perigo.” Nos lugares em que as multidões em revolta enfrentam as forças de repressão, corre sangue. No que vai dar tudo isso? Em qualquer época se pode indagar sobre o futuro: no que vai dar? Os atropelos deste ano tornam a indagação mais dramática, mais carregada de maus presságios.

    Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667

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